O café da minha rua vai passar a servir colherezinhas de plástico. As de metal representam um perigo para a saúde pública e serão sumariamente substituídas por colherezinhas branquinhas, perfeitinhas, hermeticamente fechadas dentro de saquinhos de plástico transparente. Desprezando as óbvias consequências ambientais e económicas de tal decisão, o que mais custa a aceitar é o grau de perigosidade das tradicionais colherezinhas. Ora vejamos: depois da vaga de violência nas noites do Porto e de Lisboa, e da subjacente proliferação das chamadas armas “brancas”; após a morte de uma idosa de 84 anos no Serviço de Urgências do Hospital de Aveiro, onde desesperou em vão mais de quatro horas para ser atendida (o tempo médio de espera nessa noite era de seis horas); e depois de todos os escândalos e casos dúbios sobre o funcionamento das forcas de segurança pública e da justiça nacional, o presente governo concluiu que o povo português precisaria ser salvo. Mas não das pistolas, nem das metralhadoras, nem dos traficantes de droga, nem das urgências e centros de saúde em processo de encerramento, nem sequer do desemprego ou da pobreza. Os portugueses carecem, isso sim, de protecção contra as terríveis colherezinhas de café. As colherezinhas assassinas.
O Sr. José Sócrates, agora auto-proclamado grande líder europeu (Mahatma Sócrates?), deve ouvir, quando ouve, estas críticas e enquadrá-las como resquícios da falta de cosmopolitismo do povo português. Ele que conhece restaurantes e cafés de Londres, Paris, Berlim, Helsínquia (ai, Helsínquia!), conhece o caminho da modernidade e tem fé, acredita mesmo, que Portugal possa vir a ser como os outros. Uma nação asseada, jovem, que não fuma nem bebe, que corre todas as manhãs, gosta do que faz mas tem tempo para tudo, para si próprio e para os filhos, que controla a linha e que se pudesse convertia-se ao Protestantismo, abandonando as amarras da Igreja Católica. Afinal, um pouco como ele próprio, o Sr. Sócrates.
Infelizmente, ao elaborar esta equação Sócrates ignora dois aspectos fundamentais que deveriam ser de conhecimento obrigatório para desempenhar as funções de Primeiro-Ministro. Em primeiríssimo lugar, impõem-se afirmar, já, agora e em voz bem alta, que nem todos os portugueses ambicionam ser como o Sr. José Sócrates e que o direito dos cidadãos à escolha é inalienável. O Primeiro-Ministro e o Governo têm, é claro, o poder de influenciar e até orientar a população para certas atitudes individuais, como é o caso do respeito pelo ambiente, da educação sexual ou dos princípios da ética cívica, comportamentos dos quais decorre o bem-estar social. Porém, mesmo nesses casos numeráveis e excepcionais, a função do Estado reduz-se a uma posição meramente conselheira, através do ensino escolar básico e de campanhas informativas que raramente ultrapassam essas fronteiras com complementos legislativos. O que o Governo do Sr. Sócrates pretende agora fazer é tomar as diversas opções, desde a quantidade de gordura que desejamos ingerir com as batatas fritas até à matéria da insignificante colher com que misturamos o açúcar no café, que até agora foram apanágio do cidadão individual. Impõem-nos um modelo, o do Sr. Sócrates, e nem sequer nos chegam a explicar porquê esse. Se calhar, não há bom motivo.
Pior, não só está em causa a liberdade individual de escolha, mas também o particularismo de um dos ambientes e hábitos mais orgulhosamente português – o café. Preparem-se, pois em breve deixaremos de comer sardinhas assadas na rua e de levar uma boa martelada por alturas dos Santos Populares em nome dos perigos que tais hábitos possam apresentar ao corpo humano. E assim, de proibição em proibição, o Governo retira-nos a única riqueza que realmente sempre existiu e que pertence a todos os Portugueses, que é o sal do Mar, desta Terra e das suas gentes. Acaba-se a nação e fica-se com um país estéril habitado por dez milhões de Srs. Sócrates.
É esta desfaçatez do Primeiro-Ministro em prole de comportamentos externos e superficiais provenientes de um cosmopolitismo bacoco que nos leva até ao segundo aspecto. Como bem ilustra a substituição das tradicionais colherezinhas de metal pelas de plástico, o Primeiro-Ministro continua a seguir a máxima política, desleixada e mesquinha, de levar a cabo reformas de forma e não de conteúdo. Para o Governo de Sócrates, ser moderno e europeu permanece uma questão de parecer e não de efectivamente ser. Se esse último fosse o seu objectivo, o Sr. Sócrates teria então de lidar seriamente com áreas incómodas e complexas, como a educação, a justiça, e as instituições políticas, que até agora tem apenas extenuado em função das estatísticas. Como diz Pacheco Pereira, José Sócrates é um homem que não gosta de problemas e num país como o nosso, em que os problemas estão na ordem do dia, podemos apenas esperar a substituição das questões fundamentais por uma espécie de surrealismo despótico. Só assim se poderá compreender porque serão tão perigosas as colherezinhas do café.
A Gaivota Farragulha
segunda-feira, janeiro 07, 2008
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