A Gaivota Farragulha

    quinta-feira, abril 30, 2009

    Compreender o Paquistão - Final


    O regresso ontem da violência étnica à cidade paquistanesa de Karachi (o tema que primeiro me despertou interesse pelo país), recordou-me da série inacabada 'Compreender o Paquistao.' Decidi entao terminar hoje com os dois últimos pontos que gostaria de salientar sobre o país. É claro que muito fica por dizer e que, com certeza, o que está escrito poderia ter sido escrito de forma mais clara. Mas a ideia foi escrever sobre o Paquistao de forma sucinta e imediata. Espero que a série os tenha ajudado a compreender, ou entao a suscitar-vos algumas dúvidas, sobre o Paquistão.




    (A Linha Durand que separa o Paquistao do Afeganistao. The Economist)


    9 - A problemática fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão, a chamada Linha Durand, foi definida em 1893 pelos Britânicos como forma de separação entre os limites a noroeste da Índia Colonial e o Afeganistão. Na prática, a linha dividiu o grupo étnico dos Pashtuns entre os dois países (os Pashtuns representam a maior etnia do Afeganistão) e, mais tarde, deu origem às províncias Paquistanesas de North-West Frontier Provience (NWFP) e a Federally Administered Tribal Areas (FATA). Já na altura da invasão britânica, o povo Pashtun era descrito pelos oficiais coloniais como os mais bravos e ferozes inimigos que o Império tinha defrontado ao longo de quatro séculos - tanto assim, que os Ingleses acabaram por desistir do plano de ocupar o Afeganistão e ficar mesmo pela tal linha Durand. Mormente, as próprias características geográficas da região apresentam enormes obstáculos à permanência de um exército convencional (porventura, também expliquem porque a dureza dos nativos). Em primeiro lugar, este território situa-se a alta altitude, encontrando-se no ponto de encaixe entre a cordilheira dos Himalaias e a planície Iraniana, sendo, por isso, uma área propícia a tremores de terra (como tragicamente provaram os eventos de 2005), com relevo acidentado e níveis de oxigénio baixos. A região apresenta também contrastes climatéricos extremos, podendo ser terrivelmente quente durante o Verão (registando temperaturas acima dos 40 graus) e gelada durante o Inverno. Por todos estes motivos, o povo da região é essencialmente nómada, alternando entre as regiões mais altas durante o Verão e as mais baixas durante o Inverno para se abrigar do frio intenso, e, eventualmente, atravessando periodicamente a linha Durand (com as consequências que hoje vemos para a luta contra o terrorismo global). De facto, se fosse terrorista (ou me chamasse Osama Bin Laden), também eu escolheria esta região inóspita para me refugiar.

    O segundo aspecto desta história é inevitavelmente o crescente poder dos mullahs entre os líderes tribais Pashtuns. A forma como esta miscigenação teve lugar é ainda motivo de discussão entre académicos, porém a verdade é que os mullahs ocuparam o espaço deixado vazio pela ineficácia ou desinteresse do governo central paquistanês. Mais tarde, este poder foi consolidado pela ascensão ao poder dos Talibans no Afeganistão, pelos fundos e recursos distribuídos na região por potências externas (como foi antes discutido) e pelo aparecimento de dadores estrangeiros como Osama Bin Laden que viam na região um embrião para a instalação da lei Sharia em outras partes do mundo. Por fim, a invasão americana do Afeganistão em 2001, a persecução dos grupos 'terroristas' no país e a deposição dos Talibans, levou a que a região se tornasse no último reduto destes grupos. Ao tomar consciência deste facto, os EUA decidiram seguir uma estratégia de incursões militares não-oficiais no território que acabaram por reforçar ainda mais a posição dos mullahs entre a população local. Por outro lado, estes, que perdiam terreno no Iraque, virão ali uma oportunidade para não só gerar o caos no Afeganistão, mas também alcançar um prémio muito maior do que alguma fez tinham sonhado: tomar as rédeas do poder no Paquistão, uma potência nuclear. A eficácia da sua estratégia ficou bem ilustrada pelo avanço, na semana passada, dos Talibans no districto de Buner (a menos de 100km da capital Paquistanesa), e por este documentário recente sobre o vale de Swat.



    (Iftikhar Chaudhry já mudou várias vezes o destino político do Paquistao. Será que o voltará a fazer? Fox News)


    10 - A história dos últimos dez anos na política Paquistanesa tem essencialmente quatro personagens: Nawaz Sharif, líder do partido Pakistan Muslim League (N); Pervez Musharraf, Chefe do Estado-maior Paquistanês entre 1998 e 1999 e Presidente do país desde então até 2008; Benazir Bhutto (agora, na figura do seu marido, Asif Ali Zardari), Presidente do partido Pakistan People's Party (PPP); e o juiz do Supremo Tribunal Iftikhar Chaudhry. A estes nomes é importante acrescentar que a base de apoio do PML (N) é, de modo geral, conservadora (concorrendo frequentemente em alianças com partidos religiosos), nacionalista e Punjabi; enquanto que a base de apoio do PPP é progressiva, rural e Sindhi (da província de Sindh, no sul do Paquistão). Em 1999, Nawaz Sharif, então Primeiro-Ministro, decidiu retirar a Musharraf o cargo de Chefe do Estado-maior para entregá-lo a um militar mais conservador e, por isso, mais próximo da base de apoio do PML (N). Um grupo de altas patentes militares seculares e próximas de Musharraf aproveitaram essa ocasião para retirar Sharif do Governo e instaurar Musharraf sob o preceito de uma situação de emergência nacional. A chegada de Musharraf ao poder foi inicialmente vista com bons olhos por observadores internos e externos. Para muitos, ele era o bom déspota, o mau menor que iria repor o Paquistão no caminho da secularização, estabilizar a economia e sociedade paquistanesa e finalmente sarar a ferida étnica no sentido em que Musharraf era militar, mas também Muhajir - imigrante da Índia.

    Musharraf preparava-se para ser instaurado Presidente numa eleição democrática, em que concorreria com o apoio do Pakistan Muslim League (Q) em aliança com diversos partidos anti-americanos, anti-ocidentais e associados a movimentos religiosos, quando se deu o 11 de Setembro. No sentido em que a hegemonia do exército Paquistanês e, por trás dele, o Punjab, é assegurado pelos fundos americanos, Musharraf, como Chefe do Estado-maior, não teve outra hipótese senão alinhar, pelo menos publicamente, com os Estados Unidos na guerra contra o terrorismo. Porém, na frente interna, Musharraf continuou a colaborar com organizações e indivíduos ditos 'terroristas'. A gestão destes dois interesses acabou por se demonstrar desastrosa em 2007 quando ficou claro que a política de George W. Bush para combater o terrorismo no Paquistão tinha falhado redondamente, levando na realidade ao reagrupamento e fortalecimento destes grupos ao longo da fronteira com o Afeganistão (como ficou acima descrito). Apesar de toda a pressão externa e interna imposta sobre Musharraf neste período, acabou por ser o enigmático Juíz Iftikhar Chaudhry que o fez cair. Em Marco de 2007, deparando-se com a relutância de Chaudhry em aprovar a sua reeleição, Musharraf tentou forçá-lo a demitir-se e depois colocou-o sobre prisão domiciliária. A medida incentivou o início de um movimento popular anti-Musharraf, conhecido como o 'Movimento dos Advogados.' Por fim, Musharraf foi forcado a aceitar não só o regresso ao país de Sharif e Bhutto, mas também a demitir-se do cargo de Chefe do Estado-maior, que desde 1999 acumulava com o de Presidente do Paquistão, e a marcar eleições presidenciais para 2008. Foi no decorrer destas eleições que Bhutto, entretanto tendo emergido como a candidata consensual entre os interesses internos e externos, foi assassinada nas ruas de Islamabad. O PML (Q) de Musharraf acabou por ganhar as eleições com 40% dos votos, contra 37% do PPP e 23%. Porém, em Agosto de 2008, o viúvo de Bhutto, Asif Ali Zardari, e Sharif decidiram aliar forcas para depor Musharraf. Alguns dias mais tarde, Musharrad anunciava a sua demissão.

    Na sequência destes eventos, Zardari, na altura sob investigação criminal na Suíça e acusado de lavagem de dinheiro pelo Senado Norte-Americano, foi nomeado Presidente do Paquistão. A aliança entre Zardari e Sharif durou pouco, tendo sobretudo azedado como resultado da reticência de Zardari em restituir o lugar a Chaudhry (no fundo, Zardari suspeitava que este fosse um primeiro passo para a sua deposição). Já no início desde ano, Sharif foi impedido de concorrer em quaisquer eleições e colocado sobre prisão domiciliária segundo ordem do Supremo Tribunal. Desafiando esta decisão, Sharif convocou um comício à porta de casa no qual anunciou o início de uma longa marcha até Islamabad que iria trazer o fim ao Governo de Zardari. Deparando-se com o espectro de caos no país (que a administração Obama mais tarde descreveu como 'o abismo'), no dia seguinte, Zardari foi forcado a restituir o lugar a Chaudhry e a revogar a ordem de prisão domiciliária de Sharif. Com esta vitória, este último consagrou a sua posição como o político da oposicao mais popular na Paquistão. Por sua vez, sobre a cabeça de Zardari pendem agora eventuais acusações de corrupção por parte do Supremo Tribunal assim como uma investida energética dos Talibans no norte do país. Por isso, julgo que em breve teremos novos enquadramentos políticos no Paquistão. Vamos manter-nos atentos.


    (A bruma paira sobre o futuro do Paquistão. Tyler Hicks/The New York Times)



    FINAL

    quarta-feira, abril 29, 2009

    O julgamento do caso Politkovskaya - VI


    Continuamos hoje com a serializacao do artigo de Keith Gessen sobre o julgamento do assassínio de Anna Politkovskaya, publicado na edicao de 23 Marco da revista New Yorker:


    (Outra fotografia do assassino de Anna Politkovskaya.)

    Almost all the Russian journalists who regularly attended the trial believed that the defendants were innocent and had been framed. 'You don't understand how things are done here,' a young court reporter named Anatoly Karavaev, from Vremya Novostei, told me. 'They just do a dragnet for Chechens and see what comes up. But these guys are innocent. Dzhabrail is an educated person.'
    'Why can't he remember what they were doing on October 7th? I asked.
    'Who can remember what they were doing on October 7th? I can't remember what I was doing two days ago. And you heard him: they just start beating you and beating you and telling you to remember. I wouldn't be able to remember anything.'

    We were walking to the metro after a day in court as Karavaev laid this out for me. 'When this started, I thought they were guilty,' he told me. 'They're Chechens. You know how Russians feel about Chechens. They're all criminals, they are all guilty. But now...I don't think so. Because I know how the police do things. They were told to find someone, so they found someone.' 'They have nothing,' Karavaev continued the next day, during yet another break. He'd spent the night online reading Russian Wikipedia. 'The whole thing's a frameup, it's made to order, the F.S.B. has made things clear to the Judge. What more is there to say?'

    Suddenly, we were interrupted from the other end of the journalists' bench by the oldest reporter at the trial, a dry, somewhat withdrawn character from one of the city's most respected dailies. He now demanded of Karavaev how long he'd been covering the courts.
    'Not long,' Karavaev admitted.
    'And I've been covering them for fifteen years. In that time, I've seen five framups. Five. You can tell when you see it. Spend some years in the courts and then we can talk.'
    We were interrupted at this point by Musaev, who had, he said, seen more than five frameups already, and he hadn't been working as a lawyer for very long at all.

    (Ramzan Kadyrov, o homem de mao de Putin na Chechnya, nao poderia ter mais parecencas com um vilao da série James Bond. Aqui fica um ensaio fotográfico do déspota na Residência Presidencial que conta com um zoo pessoal. AP.)


    That day, the veteran reporter took Karavaev and me to lunch at McDonald's. 'Might the F.S.B. have killed her using Chechen hands?' he wondered, over a tray laden with four cheeseburgers. 'Maybe. I think that's what happened. But it's not like Putin told someone, 'Go kill Politkovskaya.' And then signed a Presidential order about it. No. But maybe they were sitting around at the F.S.B. one day and some major general said, 'Jesus fucking Christ, this Politkovskaya, isn't there anything we can do about her?' And one of the lieutenant colonels said, 'General, I think we can.' And that was it, that was the whole conversation. Or maybe Ramzan' - Ramzan Kadyrov, the Moscow-based ruler of Chechnya, against whom Politkovskaya had written her most vicious pieces - 'was sitting around and he said, 'This bitch. Are you telling me we can't do anything about this?' And then they got in touch with their friends in the F.S.B. and those guys said, 'Oh, you have a problem? Because, yeah, we have a problem, too. Let's work together on this.'

    'The thing about Anna Stepanovna,' he went on, 'was that she'd started going after all of them personally. That's the funny thing about Russia. And about Chechnya in particular. It's not reporting on someone's business that gets you, it's going after them personally. It's one thing to say, 'Look at all this money that got stolen.' That wasn't enough for her. She said Ramzan was a 'coward hiding behind his bodyguards.' I mean, she said this of a Chechen. Can you imagine that? A woman saying that of a Chechen?' He shook his head. 'She kept pushing the envelope. She kept going after them personally. You felt like this was her destiny that's where she was heading and she knew it. And then it happened.'

    (...)
    Prosecutors in Russia don't have trouble getting convictions: bench trials have a ninety-nine-per-cent conviction rate; even jury trials, which are rare (and usually reserved for the most egregious crimes), have a seventy-five-per-cent conviction rate. Musaev confessed to me that he had zero wins and ten losses in criminal trials with a presiding judge, and this was his first jury trial. When I put all this Ilya Politkovsky, he assured me that the prosecution was going to come with a lot of heat in the portion of the trial where the sides presented 'additional' evidence. Instead, the lead prosecutor stood up and said, 'We're in a bit of an awkward situation. You see, the evidence that we were going to present today has been lost. And we can't proceed without it.' Turmoil ensued. It was soon revealed that the 'evidence' in question was just a compact disk with a PowerPoint presentation that showed the movements of Politkovskaya and the getaway car on the day of the murder. It was a file that all the lawyers and even Ilya Politkovskaya also had on their computers.

    (Um representante do tribunal faz um comunicado de imprensa. Alexey Sazonov/AFP/Getty Images)


    The jurors were release for the day. The wire-service reporters rushed into the hallway to file reports that a key piece of evidence had been lost; for the first time in weeks, Politkovskaya led the news cycle. It was too early for lunch, and so I stayed in the courtroom. Ilya let me study the controversial PowerPoint file on his laptop. It listed all the cameras near Politkovskaya's building that were used to capture shots of the green Lada and of the shooter practicing his entrance and exit in the days before the killing. It had a map of Dzhabrail and Ibragim Makhmudov's whereabouts, as per cell-tower locations. It showed photographs of the shooter entering the building, and Politkovskaya approaching the building and rummaging for her keys, and then it showed the gruesome photos of her crumpled on the floor of the elevator, blood from the gunshot in her gray hair. A time stamp accompanied all the photos: 15:57:38; 16:06:28; 16:07:03.

    When I finished I saw that a small group - including Ilya and Moskalenko - had gathered around Musaev, who was sitting in front of his laptop. I came over just as he pressed a button and a video began to play. It was from July 200. There was a river, it was a sunny day, and some young men in swim trunks were covered in mud. They were throwing the mud at one another and laughing, chasing after each other with the mud. I recognised Tamerlan, the youngest Makhmudov brother; he kept whipping mud at a sturdy, full-belied man. It was Rustam, nine months after the shooting. Dzhabrail was holding the camera - it was his cell phone, which was already part of the evidence for the case. Everyone watched it in silence, amazed. 'Turn on the sound,' Moskalenko said.
    'They're just playing,' Ibragim's lawyer said. 'You think they're going to say, 'Remember how we killed Politkovskaya?''
    'Musaev turned on the sound. 'I'm holding the fort!'' someone translated from Chechen. ''I'm coming at him form the side. I've scored a direct hit!''
    'They're playing at war,' Ibragim's lawyer said.
    'I get it,' Moskalenko said.

    Musaev turned off the sound. It was a months before the younger brothers were all arrested. There was no way that the bearlike man in the video was the same as the thin man in the baseball cap who had entered and exited Politkovskaya's building just before and after she was killed.


    FIM

    terça-feira, abril 28, 2009

    'Os Deuses não respondem a cartas'


    (© Sophie Bassouls/CORBIS SYGMA)



    Entretanto, aterraram na mesinha da nossa sala estar em Bruxelas umas quantas edições atrasadas da New Yorker, cuja anualidade a minha namorada teve o bom espírito de me oferecer este Natal. Para quem, como eu, é leitor assíduo da ‘melhor revista do mundo’ - as palavras são minhas mas poderiam certamente pertencer a muitos outros - as semanas pautam-se pelos mágicos momentos em que desvendamos o cartoon imortalizado na capa da última New Yorker para depois devorar o seu recheio. Desta feita, deparando-me com a abundância do recurso outrora escasso, comecei então por ‘julgar as revistas, pelas capas’ e recuperar a leitura em atraso na seguinte ordem: das capas mais interessantes para as menos interessantes.

    Porém, sempre que regressava à mesinha da sala para repescar uma nova edição, havia uma capa que me saltava à vista pela sua total e completa falta de originalidade, imperfeições que nunca tinha atribuído à minha revista predilecta. Apresentava pois retratado na capa, de forma muito cabal e aparentemente insípida, nada mais, nada menos do que o próprio símbolo da New Yorker: um cavalheiro oitocentista elegantemente vestido, completo com cartola e monóculo, espiando uma borboleta passageira; em suma, o arquétipo do intelectual. A capa suscitou-me tal desinteresse que a edição de 9 a 16 de Fevereiro de 2009 acabou por ficar para última na fila de espera. Apenas na semana passada consegui chegar até ela.

    Já tinha ouvido falar de John Updike. Sabia que era um escritor americano, que tinha publicado recentemente um livro – já traduzido em português – e, julgava-o de algum modo afiliado ao ínfimo movimento socialista norte-americano (estava errado). Logo nas primeiras linhas do primeiro artigo da secção ‘Talk of the Town,’ paragem inaugural da revista, fiquei a saber que Updike tinha morrido este ano (1932-2009) e que a sua relação de quase 60 anos com a New Yorker tinha sido, nas suas próprias palavras, 'the ecstatic event of his professional life.' Ao longo deste e de outro artigo, ambos escritos por dois antigos companheiros da revista, aprendi sobre as origens deste homem brilhante que nasceu numa quinta na Pennsylvania e que manteve até à velhice a humildade que herdou dos pais: segundo um dos colaboradores, Updike era o sonho de qualquer editor, sugerindo pacientemente melhores alternativas sintáxicas para uma frase, não hesitando em perguntar: 'Which one sounds better, do you think?'

    Li também sobre um escritor inspirado por Proust e Nabokov, mas também Borges e Henry Green, fascinado pelas coisas mundanas da vida ('uma mulher a correr para o eléctrico; a hibridação dos sotaques Americanos; a forma como o ar frio do compartimento das bagagens nos porões dos aviões pode parecer um segredo quando desfazemos as malas'). Um homem simpático, dotado de um humor honesto que temia aceitar o seu próprio medo pela velhice e pela morte.

    Mais à frente, na parte central da revista, publicam-se excertos de algumas das mais 800 contribuições de John Updike para a New Yorker, a primeira das quais na edição de 14 de Agosto de 1954. Que melhor forma de prestar homenagem a alguém que admiramos senão exibir a obra fantástica que esse indivíduo construiu em vida? E que obra a de Updike! No texto 'Museums and Women' de 1967, identificamos não só os contornos do Guggenheim como também alguns dos cenários mais carismáticos dos filmes de Woody Allen:

    'She was the friend of a friend, and she and I, having had lunch with the mutual friend, bade him goodbye and, both being loose in New York for the afternoon, went to a museum together. It was a new one, recently completed after the plan of a recently dead American wizard. It was shaped like a truncated top and its floor was a continuous spiral around an over-weening core of empty vertical space. (...) Suddenly, as she lurched backward from one especially explosive painting, her high heels were tricked by the slope, and she fell against me and squeezed my arm. (...) She righted herself but did not let go of my arm. Pointing my eyes ahead, inhaling the presence of perfume, feeling like a cliff-climber whose companion has panicked on the sheerest part of the face, I accomodated my arm to her grip and, thus secured, we carefully descended the remained of the museum. Not until our feet touched the safety of the street level were we released. Our bodies separated and did not touch again.'

    Noutro artigo, sobre o último jogo em casa (no Fenway Park dos Red Soks em Boston) do seu ídolo de basebol da adolescência, Ted Williams, Updike descreve como após marcar um fabuloso home-run, Williams remete-se para a escuridão do banco de suplementes sem demonstrar qualquer tipo de reconhecimento pelo êxtase provocado no multidão que grita o seu nome. Na opinião da maior parte dos comentadores, Williams teria sido arrogante; porém, para Updike, Williams tinha agido de acordo com a sua condição: 'Gods do not answer letters.'

    Foi neste ponto que percebi o motivo da capa da edição. Os editores escolheram o símbolo da New Yorker para homenagear o homem que personificava talvez melhor do que ninguém o próprio intelectual nova-iorquino do século vinte. Updike é a New Yorker. Foi isso que inspirou este meu artigo e que me levou também a confirmar de novo que não se deve julgar nada, nem sequer mesmo uma revista, pela capa.

    FIM

    domingo, abril 26, 2009

    O Grito de Ipiranga de Björk

    'Declare independence,
    don't let them so that to you!

    Start your own currency!
    Make your own stamp,
    Protect your language!

    Make your own flag!

    Raise your flag! (Higher, higher!)

    Assim segue o tema que já valeu a Björk vários sarilhos. Primeiro, em 2008, foi o cancelamento do seu concerto na Sérvia depois de ter anunciado, no decorrer de duas performances da canção em Tokio, o seu apoio pela independência do Kosovo. Mais tarde, num concerto em Xangai, em Março, Björk teve mesmo a coragem de alterar a letra da canção para gritar 'Tibete, Tibete!', juntamente com 'Raise your flag!'. O desacato levou ao bloqueio do seu website no território chinês e a ameaças de proibição no país, assim como da imposição de maiores restrições para artistas estrangeiros. Posteriormente, Björk usou também a canção para apoiar o povo das ilhas Faraó (actualmente, sob administração dinamarquesa) e o os Aborigines da Austrália. Para mim, a canção soa-me a hino à irreverência e à militância individual tão raros como necessários nos dias de hoje, e que se adequa bastante ao meu estado de espírito nesta noite de domingo. Declarem independência!

    sexta-feira, abril 24, 2009

    Uma nota sobre o conflicto no Sri Lanka





    Uma pequena nota a pedido de um amigo sobre a situação no Sri Lanka, território que ainda hoje apresenta vários vestígios da ocupação portuguesa ao longo dos séculos XVI e XVII.


    A divisão étnica da população do Sri Lanka é aproximadamente a seguinte: 73% Cingal (Budista); 14% Tamil (Hindu) e 7% Muçulmana. Na altura da independência do colonialismo britânico, em 1948, o Sri Lanka adoptou uma democracia parlamentar bicameral no exemplo da Câmara dos Comuns e da Câmara dos Lordes em Inglaterra. Porém, no caso do Sri Lanka, a democracia maioritária está precisamente na origem do conflicto étnico. Isto porque num sistema em que a maioria vence (´first past the post, wins'), a minoria Tamil viu-se absolutamente alienada de todos os organismos de poder. Mormente, o nacionalismo Cingalês Budhista tornou-se, desde muito cedo, como o principal veículo para a obtenção de maiorias entre os maiores partidos cingaleses. Assim, o primeiro Governo do Sri Lanka independente introduziu uma lei, conhecida como o 'Sinhala Only Act' que estabelecia a língua cingalesa como a única língua estatal - todas as outras não poderiam ser ensinadas nas escolas, nem impressas em publicações.

    Ao longo das décadas, os graves abusos cometidos contra a minoria Tamil, concentrada no nordeste do país, estenderam-se a muitos outros campos e estão bem documentos - mais informação AQUI. Finalmente, em 1976, um grupo de Tamils formou o movimento Tigres da Libertacao de Tamil Eelam (mais conhecidos como os 'Tigres do Tamil' ou o LTTE) que iniciou uma campanha de violência contra o Estado do Sri Lanka. Desde então, estas duas facções submergiram o país em quatro guerras civis: a primeira entre 1983-87; a segunda entre 1990 e 1995; a terceira entre 1995-2002; e a quarta desde 2006 até aos dias de hoje. A proporção do sofrimento e da desgraça humana causada por estas quatro guerras ultrapassa porventura qualquer outro conflicto existente neste momento no mundo, estimando-se em 2008 que o total de mortos seja de 80,000 (incluindo civis). Com efeito, até 2001, os 'Tigres do Tamil' eram o movimento com o maior número de atentados terroristas, desafiando qualquer teoria de que tais actos são próprios dos muçulmanos.

    O conflicto no Sri Lanka tem fortes contornos internacionais. Em primeiro plano, está claro a Índia, vista como a potência regional, com um papel a desempenhar na estabilização do Oceano Índico. Porém, mais importante ainda, é o facto de os Tamil representarem a maioria no estado indiano de Tamil Nadu, o destino de grande parte dos refugiados do Sri Lanka. Desde do início do conflicto que circulam dentro e fora do Sri Lanka rumores sobre o apoio dos políticos indianos, nomeadamente do Tamil Nadu, aos 'Tigres do Tamil'. Finalmente, entre 1987 e 1990 a Índia enviou para o Sri Lanka uma forca militar, a India Peace Keeping Force (IPKF), com o intuito de estabelecer e manter paz na ilha. Na entanto, ao fim de algumas meras semanas, o contingente militar indiano acabou por se envolver em escaramuças com ambos as partes do conflicto e foi forcada a retirar-se do território, em humilhação, em 1990. As relações entre os dois países atingiram o ponto mais baixo em 1991, quando uma jovem mulher associada ao movimento dos 'Tigres do Tamil,' Thenmozhi Rajaratnam, assassinou o Primeiro-Ministro Indiano, Rajiv Gandhi, num ataque bombista-suicída. Existem também rumores de que a China está envolvida numa guerra de influência com a Índia sobre o território: de acordo com essa teoria, a Índia estaria a fornecer armas e fundos aos 'Tigres do Tamil', enquanto a China estaria a apoiar o Governo do Sri Lanka. Os países escandinavos, nomeadamente a Noruega, estiveram também envolvidos numa tentativa falhada de paz em 2002.

    Em 2008, o Governo do Sri Lanka decidiu abandonar um acordo de cessar-fogo com os 'Tigres do Tamil' e retomar a ofensiva militar. Desde então, as forcas estatais têm feitos grandes avanços territoriais, conseguindo conquistar os postos mais importantes do território Tamil, assim como decapitar a liderança do movimento terrorista Já no final do ano passado, o Governo anunciou o ataque final sobre os 'Tigres do Tamil' - acho importante lembrar que alguns dias mais tarde, um grupo de terroristas lançou o caos em Bombaim (e se os terroristas fossem 'Tigres do Tamil' e não Paquistaneses como as autoridades indianos tanto tentaram promover?); e já agora que o ataque de terroristas em Lahore foi contra a equipa de Criquet do Sri Lanka. No entanto, tais sucessos foram obtidos à custa de pesados efeitos 'colaterais' civis, uma vez que os rebeldes encontraram refúgio entre as populações locais, usando-os como 'escudos humanos,' e, por sua vez, o exército do Sri Lanka não teve pudor em ataca-las - mais informação sobre os abusos dos direitos humanos AQUI. Foram estes crimes que levaram ao êxodo humano que agora vemos nas nossas televisões.


    Reflectindo um pouco sobre esta história, e sobretudo sobre a resiliência dos Tamils, é difícil imaginar que a solução militar levará ao final do conflicto. Pelo contrário, parece-me que enquanto os poderes regionais nao tiverem verdadeiro interesse em resolver a situação, e impor sanções efectivas sobre ambas as partes, a população Tamil civil do Sri Lanka continuará a ser victima de um fracasso da democracia parlamentar.


    END

    quarta-feira, abril 22, 2009

    Mais um fiasco na cimeira das Nações Unidas contra o racismo

    Começou mal e acabou pior. A cimeira Durban das Nações Unidas contra o racismo foi mesmo um fiasco. E de certa forma estavam a pedi-lo: primeiro convidam para orador um homem que à partida se sabia vinha fazer um discurso xenofóbico contra Israel e o Ocidente; e depois escolhem para Presidente do Comité Preparatório, a Líbia, país reconhecido pelos seus abusos dos direitos humanos. A certa altura, a embaixadora (embaixatriz?) da Líbia deu a voz ao representante do UN Watch, mas no seu lugar estava Ashraf El Hagog, o médico Palestiniano que foi erróneamente acusado e condenado à morte por infectar centenas de crianças Líbias com o vírus do HIV (juntamente com 5 enfermeiros Bulgaras). Hagog e as enfermeiras foram encarcerados e torturados no corredor da morte numa prisão líbia durante quase dez anos, até serem libertados no ano passado pela já desaparecida Cecília Sarkozy. Aqui fica o testamento do Dr Hagog.

    O julgamento do caso Politkovskaya - V


    Continuamos hoje com a serializacao do artigo de Keith Gessen sobre o julgamento do assassínio de Anna Politkovskaya, publicado na edicao de 23 Marco da revista New Yorker:



    (O irmão Rustam, principal suspeito pelo assassínio de Politkovskaya, que nunca chegou a ser preso e julgado em tribunal. AP)


    The evidence, it was becoming clear, was a little sparse; once Musaev started going through it, you began to wonder if there was any evidence at all. The green Lada: studying the video of Politkovskaya's street on October 7th, Musaev found seven other green Ladas. This seemed like a lot even in a country full of Ladas. Musaev proposed that the featured green Lada was a decoy.

    Politkovskaya's route home: in order to demonstrate that Ibragim had waited as a lookout for Politkovskaya's car, the prosecution produced a map on which they charted her route home from the supermarket. Musaev, dissatisfied with the details and especially with what he considered the skewed scale of the map - 'this Picasso painting,' he called it - demonstrated that Politkovskaya could have taken a different route home and bypassed Ibragim.

    There was more. The Ramstore supermarket where Politkovskaya shopped on October 7th also had video cameras, can they seemed to have the wrong date. The time on the camera in Politkovskaya's entryway was not synchronized with the time on the bank cameras, nor was it synchronised with the cameras in the other entryways. There were explanations for all these
    discrepancies, but their cumulative effect was powerful, and it set up the most significant of the questions that Musaev had for the prosecution, dealing with the veracity of the cell-phone records.

    The cell-phone records were a mess. They had initially been submitted to the court not as a printout but as an Excel file that any user could alter. Throughout the trial, all such documents were displayed on a large flat-screen monitor that would be mounted on the desk just before the jurors, and at one point Musaev connected his laptop to the screen, opened a copy of the Excel file on his computer, deleted 'Dzhabrail Makhmudov,' and typed in the name of the lead investigator of the case, 'Petros Garibyan'. He further showed that the author of the file wasn't the cell-phone company, MegaPhone, but the 'Interior Ministry'; i.e. the police. In the column that should have said 'User' or 'Customer'. it said, instead, 'Principal.' This too, could be explained - the investigators had, for their own convenience, transferred the cell-phone records to an Excel file. But they had made a humiliating mistake: Dzhabrail's records showed six calls between him and Ibragim, while Ibragim's showed only four. Musaev immediately declared the cell-phone records fake.

    The phone records became one of the two great evidenciary scandals of the trial. Moskalenko asked the court to request new records from the cell-phone company, and when they came back they did so as a printout, not as an Excel file, and the phone calls corresponded. But Musaev at this point was indomitable. 'They fixed their mistakes,' he said. 'Good for them.' By the end of the trial, he was convinced that all the evidence had been cooked up. When I told him I found it easier to believe in technical or human error than in a conspiracy at the investigators' office, he joked with a lawyer's joke: 'A man on trial is asked, 'What can you say in your defence?' 'Your Honour, I was peeling an orange on the street. This gentleman was walking by, accidentally slipped on the rind, and fell on my peeling knife.' So the judge says, 'And this happened twenty-eight times?''

    (...)
    But the tactical effect of the phone-records argument was to shift the moral burden of the case: Musaev was no longer opposed to the Politkovskaya's family, he was opposed to the falsifications of the authorities. And, like it or not, the Politkovskaya family, in accepting the validity of the phone calls, found itself on the falsifiers' side.
















    (As fotografias das câmaras de segurança do prédio, tiradas antes e depois do assassínio de Politkovskaya. Xinhua/Reuters)


    Then, there was the problem of Rustam. The indictment, which runs to two hundred pages, devotes a great deal of space to him. We are told that the killer wore sneakers with a white midsole; witnesses report that Rustam also wore sneakers like that. Further witnesses describe his appearance, and for several pages the evidence of Rustam's height is the lone detail set off in bold: 'approximately 165-167 cm tall'; 'approximately 167 cm tall' ; 'approximately 168 cm tall' ; 'approximately 165 cm tall.' At the end of all this comes the following paragraph:
    "According to the conclusions of the forensic photography expert, the men entering A.S. Politkovskaya's building before her arrival and leaving the building immediately after her shooting is 167 centimetres tall."

    During the proceedings, the eldest Makhmudov brother inhabited a gray area: he wasn't in trial, but his brothers were on trial for abetting him, and so the claim that he was the shooter was a key part of the case. Yet the defence managed to cast doubt on the assertion that this was Rustam. For one thing, he had been in a bad car accident in 2004, had broken his hip, and now had a limp. For another, the killer in the baseball cap was thin, whereas Rustam was heavyset. The boys' mother had brought some old photos of him, but these were not admitted as evidence - the Judge argued that Rustam's identity fell outside the bounds of the case. Nevertheless, Dzhabrail, during his testimony, had been asked if the security-camera photo of the killer looked like Rustam. 'I'm telling you, when they showed me that photo and told me it was Rustam, I couldn't believe it,' he said to the court, 'I said, 'This?' This is what you have? I've been counting on some decency! I thought you had something!' Because the thing about Rustam is, he has a body type, how should I put this?' He looked around the room to try to find someone overweight. Some of the jurors were overweight, and Judge Zubov was overweight, but Dzhabrail had enough presence of mind not to remark on it. Finally, he said, 'The thing is, he just really struggled with his weight!'

    The certainty that it was Rustam on the video was slowly crumbling. A lot of people are a hundred and sixty-seven centimetres tall.

    FIM


    segunda-feira, abril 20, 2009

    A maior democracia do mundo a votos


    As eleições legislativas indianas arrancaram na semana passada. Cerca de 153 milhões, dos mais de 700 milhões de pessoas registradas no acto eleitoral, votaram nesta primeira fase. Aqui ficam algumas das fotografias mais interessantes que reuni na net desta digna homenagem a Gandhi:


    (Como seria de esperar, as filas de espera, separadas entre homem e mulheres, foram grandes. Mahesh Kumar/AAP)



    (A apresentação do documento de identidade foi obrigatória. WN/Bhaskar Mallick)


    (Sondagens apontam para que nenhum dos dois maiores partidos consiga alcançar uma maioria governativa. AFP)



    (Apesar dos ataques em Bombaim, as eleições concentraram-se em assuntos locais. Ruth Fremson/The New York Times)




    (Mesmo assim, o contingente de segurança foi apertado. AFP Getty)






    (Ao contrário das democracias ocidentais, a abstenção na India tem vindo a decrescer e os pobres vão mais às urnas do que os ricos. AP)



    (Os símbolos que representam os partidos nos boletins de voto. Ruth Fremson/The New York Times)




    (A máquina de votos. AP)




    (A prova. Adnan Abidi Reuters)





    (No estado de Meghalaya, no nordeste do país, o acto decorreu em mesas de voto como esta. Shubamoy Bhattacharjee)

    quinta-feira, abril 16, 2009

    O pequeno Knut cresceu!

    Em primeiro lugar, a mulher sobreviveu! Depois, o incidente aconteceu no mesmo zoo de Berlim onde está o famoso urso Knut - embora nao fosse ele o mau desta história (imaginem se fosse, lol). Qual foi a ideia de saltar para dentro do charco dos ursos polares? Tentativa de suicídio, vontade de fazer 'festinhas' aos bichinhos, ou apenas calores? Ainda por cima, o episódio aconteceu durante o horário da alimentacao dos bichos...é caso para dizer que há malucos para tudo!

    Num lugar qualquer no Caucaso...



    Lol!

    quarta-feira, abril 15, 2009

    O julgamento do caso Politkovskaya - IV


    Continuamos hoje com a serializacao do artigo de Keith Gessen sobre o julgamento do assassínio de Anna Politkovskaya, publicado na edicao de 23 Marco da revista New Yorker:


    (O segundo irmao Makhmudov, Ibragim, era uma personagem menos simpática do que o primeiro. AFP)


    After Dzabrail's testimony was finished, it was his brother Ibragim's turn. He was accused of standing on the street about half a mile from Politkovskaya's building and calling Dzabrail when he saw her car drive past. Ibragim, twenty-nine, was a lot less charming than Dzabrail. 'Do you understand what you're accused of?' his lawyer asked him. 'If someone had explained it to me, I'd understand,' Ibragim said. Tall, broad-shouldered, but underweight, with sunker eyes, he did not look well. He'd gone to the same school as Dzabrail, but, as he volunteered, he was no scholar: he'd been kicked out seven times. His lawyer asked if he had ever read Politkovskaya's articles. 'I'm trying to tell you,' Ibragim said. 'I never read anything.'

    In the fall of 2006, Ibragim was working odd jobs, driving a taxi, helping out at the Litkino fish market. He could account for much of his time in the months before the crime but could not say what he was doing in Politkovskaya's neighbourhood on the afternoon of October 7th. He'd been seen at a birthday party that night; this he now remembered fondly. 'I came into the café and there was all this food and I said, 'Hey, Happy Birthday! Congratulations!' And then I ate all the food.' When he was asked how it was possible that he could remeber what he'd been doing in the evening and not what he'd been doing during the day, Ibragim though of a joke. 'I'll tell you why: I ate so much food at that birthday party, I forgot everything!'

    Everyone laughed, though unhappily. Later in the trial, the lead prosecutor, responding to another outburst of laughter in the court, reminded everyone that there were at a murder trial. Sometimes it felt like a murder trial; most of the time it didn't.

    Outside of the courthouse, the country's ongoing financial crisis had put some life back into the tiny government opposition. Its supporters declared the last day in January a 'day of dissent.' Rallies were organised, some permissions were refused, and, as usual, the Kremlin allowed itself some larger counter-rallies. Arrests were made. The next day, a Sunday, a memorial meeting was held for the young lawyer, Stanislav Markelov, and Novaya Gazeta freelancer who'd been shot.

    The Politkovskaya trial had created a schism in Moscow liberal circles. On one side were people who felt they'd seen this show before: two Chechens in the dock; dubious evidence; well-publicised arrests. (...) On the other side was Novaya Gazeta, the loudest opposition paper in Russia, which believed that at the time, at least, the authorities had done their job. (...)

    Everyone was at the memorial meeting: the human-rights campaigners who thought the Makhmudov brothers were innocent, and editors of the Novaya Gazeta, who thought they were guilty. It was the coldest day of the year, five degrees Fahrenheit, and at the public square Chistye Prudy speaker after speaker got up to talk about the work that the lawyer had done on behalf of nascent independent unions, opposition journalists (he had defended Polittkovskaya against charges of libel), and anti-Fascist activists. 'The cops aren't shit!' a tall young man in sunglasses from the group Antifa, which engages in fistfights with Nazi groups on the streets, declared. 'They come to our meetings and get them on video' - there was, in fact, a beefy man with a camcorder standing up on a height and scanning the crowd with his camera - 'but when it comes to protecting us they're too afraid!'
    (...)

    The alleged organiser of the murder of Anna Politkovskaya, Sergei Khadzhikurbanov, was an odd character. Dark, short, and solidly built, he'd worked until 2003 in the Moscow police's organised-crime department, in an 'ethnic unit' devoted to the criminal organisations run by ethnic diasporas in the capital. 'This is a hateful figure to me,' Musaev, the lead defence lawyer, admitted. 'This is a person whose job it was to destroy Chechens. I remember people like him used to come and search my house when I was a kid.' In 2003, Khadzhikurbanov was jailed for allegedly beating a drug dealer during a search. (The conviction was overturned in 2006.) Now he was accused of recruiting Politkovskaya's killers and of procuring the gun for Rustam Makhmudov.



    (Khadzhikurbanov, declarava-se inocente mas sabia bem quem contrataria para o trabalho. Sergey Ponomarev/AP)



    But Khadzhikurbanov was also a true believer. He had served in Chechnya in both the first and the second Chechen wars. He had stormed the Nord-Ost theatre in October, 2002, when it was occupied by Chechen terrorists. He was well spoken and quick to take offence. Unlike his good friend Ryaguzov, from the F.S.B., who spent much of the trial poring over a book of crossword puzzles, Khadzhikurbanov often brought a folder with papers to the sessions and rustled through it as the trial proceeded. Of all the defendants, he was the most eager to engage with journalists during the breaks and plead his case.

    Khadzhikurbanov barely bored to deny the accusations that he'd assaulted the travel agent: he was convinced that the man was forging passports for Chechen rebels. But he was incredulous at the Politkovskaya's indictment. He'd never seen Ibragim until they walked into court together; he had met Dzabrail just once, when the boy's jailed uncle asked him to give Dzabrail three hundred dollars for groceries. The police officer who the lone witness against Khadzhikurbanov was a liar who owed him a lot of money, and might himself have been behind the murder. What's more, Khadzhikurbanov had got out of prison only on September 22, 2006.


    'What did you do after your release?' his lawyer asked him.
    'I organised a killing in fifteen days.'
    'No, really, what did you do?'
    'I did what anyone who had just been in prison for two years would do, who has a family and kids.'
    'You spent time with your family,' the Judge said.
    'Yes.'
    Musaev interjected. 'It's possible I missed something, maybe my attention wandered, but did the prosecution at any point say anything at all about you buying a gun, where you got the gun, and who you got it from?'
    It hadn't actually.

    At this point, Musaev, having just recently demonstrated that his client (Dzabrail) was a sweetheart and his client's brother and alleged co-conspirator an idiot, had a follow-up question for Khadzhikurbanov.

    'Tell me: If you were planning to carry out surveillance on someone, would you hire for this task a professional, or would you hire the brothers Makhmudov, one of whom was trying to apply to graduate school, and the other of whom lugged fish at the Litkino market?'
    'I would hire professionals,' Khadzhikurbanov said.



    (Segundo a acusacao, o tio dos 'meninos', Lom-Ali Gaitukayev - um figura bem conhecida do submundo moscovita, na altura, a cumprir pena de prisao pela tentativa de assassínio de um empresário - tinha sido contactado pelo seu ex-colega no F.S.B., Pavel Ryaguzov, para encontar agentes para o trabalho. Foi ele que depois contratou Khadzhikurbanov, que havia conhecido na prisao, e os seus sobrinhos, Dzabrail e Ibragim para assassinarem Anna Politkovskaya. Gaitukayev apareceu no tribunal apenas como testemunha. Mikhail Pochuev/Kommersant)

    END

    Campanha sobre o aquecimento global

    Este vídeo simpático foi produzido pela agência de publicidade brasileira, Ponto de de Criacao/fluor, em Janeiro 2009. Uma forma simples de ver um problema grande.

    domingo, abril 12, 2009

    Conversas com Somalis sobre americanos...



    (Um grupo de líderes tribais Somalis. Reuters/Shabelle Media)


    Já na parte final da minha estadia no Iémen estabeleci contacto com um rapaz em Safia, o subúrbio de Sana’a onde se concentra a comunidade de refugiados da Somália, que me marcava entrevista com líderes tribais Somalis. Abdulgader, era esse seu nome, não deveria ter 30 anos e na primeira vez que o conheci, vestiu-se a rigor com sapatos pretos engraxados, calças pretas de tecido fino e camisa de fato, azul e impecavelmente passada a ferro. O seu aprumo sofreu um forte desleixo do primeiro para o segundo encontro (que atribuí ao facto de me ter considerado ‘um jovem’) e foi descaindo consistentemente até ao dia em que me recebeu descalço, com o lenço de usar por casa enrolado à cinta e uma t-shirt vermelha que fazia sobressair ainda mais o seu tom de pele escura.

    Havia dias em que chegava a sua casa no preciso momento em que decorria uma das cinco orações diárias que cumpre a todos os muçulmanos observar. Nesses momentos, deixava-se entrar dentro de casa, um rés-do-chão de portas abertas para a poeira amarela da rua, tirava os sapatos sem fazer barulho e atravessava o quarto em bicos de pés até ao lugar para mim reservado na cama (que, para além da mesinha de televisão, dos tapetes e dos cortinados que serviam de portas, constituía a única peça de mobiliário e decoração). A cama era um assento de distinção que, como os sapatos, as calças e a camisa de Abdulgader, vinham ao encontro das expectativas geradas pela presença de um homem branco em casa de um refugiado em Safia.

    Abdulgader nunca me esperava sozinho e, nos instantes em que tinha oportunidade de vislumbrar a sua experiência religiosa, não era invulgar encontrar uma linha inteira de homens prostrados ao seu lado. Um ou outro estavam lá para ser entrevistados, outros vinham acompanhar o entrevistado, outros vinham ver do que se tratava e, por fim, outros eram meros ‘amigos’ de Abdulgader que vinham contar o seu infortúnio ao estrangeiro. As entrevistas começam geralmente lacónicas e improdutivas, mas acabavam sempre por se tornar em debates a muitas vozes, entre as quais tinha que me sobrepor para não perder a tradução de Somali para Inglês de Abdulgader. Era nessa altura, quando o grupo finalmente se desprendia das circunstâncias em que nos encontrávamos, que então acedia ao chá com leite de cabra que me serviam num serviço pequenino de plástico a imitar porcelana.

    Foi durante uma dessas discussões, já não me recordo exactamente, talvez falássemos do abandono dos Somalis pela comunidade internacional, que me veio à cabeça o episódio dos dois helicópteros americanos abatidos nos céus de Mogadishu. Nos livros de história esse episódio ficou eternizado como a Batalha de Mogadishu; na consciência popular, ficou irremediavelmente associado ao filme prosaico de Ridley Scott ‘Black Hawn Down.' Sabendo-me na presença de alguns refugiados de Mogadishu, perguntei então se alguém se lembrava dos eventos desse dia de Outubro de 1993.

    As respostas foram vigorosas. Mesmo entre aqueles que não estavam em Mogadishu, a memória daquele dia estava ainda bem viva. Para aqueles que estavam em Mogadishu naquele dia, o episódio tinha sido um momento inesquecível das suas vidas mal aventuradas. Contaram-me que, assim que souberam da notícia da queda dos dois helicópteros americanos, acorreram ao local para ver os corpos dos soldados americanos, ensanguentados e nus, serem arrastados pelas ruas da cidade. Alguns, relataram-me com orgulho e entusiasmo, que tinham mesmo tido oportunidade de atirar pedras aos corpos sem-vida dos soldados. ‘That day was a great day for us’, disse-me o coro de homens sentados à minha volta, ‘that day we show the world that they shouldn’t mess with Somalis.’

    Devo confessar que as réplicas suscitaram-me desconforto. De repente, tomei consciência de que era o único homem branco no meio de tantos que tinham como motivo de regozijo a execução popular de ‘outros como eu.’ A associação não era só fruto da minha imaginação fértil, mas também patente em todo o nosso relacionamento, desde a roupa de Abdulgader, ao meu lugar na cama, às perguntas sobre a minha opinião dos políticos ocidentais. Foi a ilusão de que a minha presença ali passava despercebida que ruiu por terra. No fundo, a vertigem de desconforto despertou-me para a minha vulnarabilidade naquele quarto, naquela casa diluída no labirinto urbano, naquela cidade tão remota e incompreensível, naquele país miserável e sem lei.


    (Veronique de Viguerie/Getty Images via The Guardian)


    Como é óbvio, ninguém naquele quarto desejava assassinar-me. Mormente, a ideia de que os presentes tinham o à-vontade para falar abertamente sobre o tema comigo acalentava-me o espírito de que afinal as diferenças entre nós poderiam ser encurtadas.

    Assim, o desconforto acabou por dar lugar à surpresa pelas reacções dos reunidos. Na verdade, o furor que o episódio despertava nos homens ali presentes não me fazia qualquer sentido. A Batalha de Mogadishu não lhes trouxe qualquer benefício; pelo contrário, tinha piorado as suas condições de subsistência. As imagens dos soldados americanos arrastados pelas ruas de Mogadishu foram de tal forma traumatizantes para a consciência popular que, na sequência da batalha, o contingente americano bateu retirada, efectivamente abandonando o povo Somali à brutal mercê dos 'Reis da Guerra' locais. O episódio cometeu assim a Somália ao desprezo e esquecimento por parte dos grandes poderes internacionais e proporcionou um livre de trânsito para a realização de alguns dos mais cruéis e generalizados abusos dos Direitos Humanos da era moderna. Acima de tudo, as imagens são inevitavelmente repescadas sempre que alguém tenta explicar a reticência dos poderes internacionais em intervir no Darfur: a Batalha de Mogadishu consolidou a convicção de que o Corno de África é demasiado perigoso, e insuficientemente precioso, para merecer o risco. As subsequentes tragédias humanas na Somália, na Etiópia, na Eritreia e no Darfur são, infelizmente, provas cabais desse argumento.

    Em última análise, e julgo que foi esta foi a maior lição que aprendi na minha experiência com os refugiados, a guerra para os Somalis é muito mais do que um jogo estratégico, do que a conquista de uma posição ou mesmo de uma questão de vida e morte. A guerra é uma questão de honra que ultrapassa os limites da própria existência individual, como que uma herança inextinguível que passa de país para filhos e que tem uma importância maior do que alguns aspectos mais mundanos da existência terrestre. A guerra para os Somalis é um modo de vida, mas também uma tradição que define o estatuto e ocupação das tribos Somalis, estruturas fundamentais numa sociedade sem estado.

    Por isso, quando ao longo do fim-de-semana, assisti à forma como Barack Obama e a forca da NATO (em que está incluída uma fragata portuguesa, como uma prova do interesse estratégico de Portugal na região) planeiam lidar com o tema da pirataria Somali no Golfo de Aden, não posso deixar de considerá-la um erro gigantesco. Há alguns povos, como os Pashtuns na fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão, os Tamils no Sri Lanka, ou os Palestinos, que, por muito inferiores e agastados que estejam, nunca irão abandonar o campo de batalha. A sua própria estrutura, enquanto indivíduos e sociedade, não lhes permite. Talvez através de conversas regadas a chá com leite de cabra tivéssemos mais sucesso. E essas, por incrível que pareça, são as mais raras.




    END


    quarta-feira, abril 08, 2009

    O julgamento do caso Politkovskaya - III

    Continuamos hoje com a serializacao do artigo de Keith Gessen sobre o julgamento do assassínio de Anna Politkovskaya, publicado na edicao de 23 Marco da revista New Yorker:


    (O fillho da victima acreditava 'honestamente' que os réus escondiam algo. Getty Images)


    One person in the room was unconvinced by Dzhabrail's testimony: Ilya Polikovsky, the victim's son. Thirty years old, a little chubby and in an expensive shirt, Ilya looked less like the son of a dissident journalist than like one of the successful young men who fill Moscow's mid-priced restaurants and upscale coffee shops. In fact, this was about right: Ilya had been sent to England for high school and college, and now works in public relations. In the courtroom, he was a ball of energy, watching Dzhabrail's testimony with intensity, whispering to his lawyer when he though he'd spotted a contradiction. 'He's digging a hole for himself!' he said at one point, though it wasn't at all obvious that Dzhabrail was.

    'I'm sure they know something,' he said of the brothers a few days later, when we met in a sushi restaurant near the agency where he works. 'Clearly, they're afraid of something. Maybe it's their family. Maybe it's someone else.' He didn't believe that they couldn't remember October 7th. 'When something really important happens, you remember. I remember what I was doing all day when the Twin Towers fell. I remember what I was doing during Nord-Ost' - he was referring to the Moscow theatre that was taken over by Chechen terrorist in 2002. 'I remember what I was doing in the days of Beslan' - the southern town where Chechen terrorist seized a school in 2004. 'Honest, I can. Events like that remain in a person's memory.' I suggested that the murder of Anna Politkovskaya would not necessarily have registered that way with the Makhmudov brothers. 'If you got into a car that evening, and turned on the radio, what did you hear?' Ilya responded. 'Just one piece of news. The brother whop says he wrote a dissertation and all that - he says he doesn't remember? I don't believe it. I do not believe it.'

    It's an emotionally power feature of Russian criminal law that 'the side of the victims' - storona poterpevshykh - is represented on an equal footing with the prosecution and the defence. The counsel for the victims is allowed to call and question witnesses, submit protests to the court, make closing remarks. It's an ambiguous institution: where the prosecution wants a conviction, and the defence wants an acquittal, the victims want justice - or, as the victims and their lawyers kept saying, 'the truth.' Ilya would never have been an idle observer of the trial, but in this case he was also, as they say, lawyered up.


    (A advogada de acusacao nao sabia o que fazer com os suspeitos. Alexey Sazonov/AFP/Getty Images)


    In keeping with the importance of the case, the Polikovsky legal team was led by Karinna Moskalenko, the best known human-rights lawyer in Russia. Now in her mid-fifties, she has been a defence attorney in numerous politically motivated cases, including the 2005 trial of the oligarch Mikhail Khodorkovsky (who, after he started funding opposition parties, was convicted of fraud and tax evasion) and some harassing cases against the opposition leader Garry Kasparov; she was the first Russian lawyer to present oral arguments before the European Court of Human Rights, in Strasbourg. She was a good friend of Politkovskaya. In the courtroom, Moskalenko exuded moral authority; she did not take part in the minor and increasingly personal squabbling that flared up between the prosecution and the defence; and, when she spoke, people listened. 'Your honour,' she would preface many of her remarks, 'her voice carrying across the room, 'the side of the victims believes that...'

    But Moskalenko did not know what to make of Dzhabrail. She asked him about his studies; she asked him about his family. She tried to help him remember what he was doing in the neighbourhood of Politkovskaya's building that day - maybe he was running an errand to the nearby Butyrki prison, as he'd said he'd done many times? No, Dzhabrail said, he was pretty sure he wasn't. Perhaps someone had merely asked him to stand somewhere, sit somewhere, in a car for example, not telling him what it was about? 'You know, I've thought about that a lot since I got picked up,' Dzhabrail said. 'Could someone have set me up? Could one of my family members have set me up? And I thought about it and thought about it and decided that no, that couldn't be. One hundred per cent no.'

    The trial was remarkably open. Judge Zubov, who had been widely condemned after he attempted to close the proceedings to the press, was hardly an authoritarian figure: one of the journalists dubbed him 'Winnie the Pooh.' He did not seem to want, and he certainly did not exercise, control over the courtroom. Everyone, including the defendants, spoke pretty much when they pleased; the parents of the Makhmudov brothers, who sat there every day, never taking off their overcoats, occasionally called out in Chechen. Especially liberal were the breaks: Judge Zubov was most authoritarian when announcing them, early and often. Then the radio reporters would get sound recordings, sometimes from the defendants in their cage: you could just walk up to them and ask them questions. In the corridor, journalists, the lawyers, the jurors, and the families of the victim and the accused all mixed together. (The prosecutors had their own office, and retired there.) During one break, I spoke with Dzhabrail's brother Tamerland, who had been held in custody for ten months.

    'What was it like?'
    'Bad.'
    'They hit you?'
    'Yup.'
    'In the face?'
    'No,' he said, smiling shyly. 'They can't hit you in the face, it leaves a mark. They hit you here, in the kidneys. Also, they put a bag over your head and crumple up little dry crackers in it, and eventually you have to breathe them into your lungs and it scratches up your insides. You start spitting blood. So that's a little thing that they do.'
    We were called back inside.


    (O julgamento decorria de forma descontraída, pelo menos para a defesa. Getty Images)


    terça-feira, abril 07, 2009

    O curioso caso de Tsutomu Yamaguchi

    (Outra caso de sorte inacreditável. Afinal, há esperanca! Jemal Countess/WireImage)

    Tsutomu Yamaguchi nao comecou a vida de trás para a frente, mas à nascença não poderia prever as voltas que a sua vida iria dar. Na semana passada, o japonês de 93 anos foi reconhecido como o primeiro sobrevivente oficial de ambas as bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaki.

    No dia 6 de Agosto de 1945, Yamaguchi estava em Hiroshima numa viagem de negócios quando a bomba atómica caiu sobre a cidade. Estando a menos de três quilómetros da zona de impacto, Yamaguchi sofreu queimaduras graves na parte superior do corpo e passou a primeira noite coberto em trapos num esconderijo subterrâneo. No dia seguinte, Yamaguchi decidiu regressar à sua terra natal Nagasaki. O resto é já história.

    O aspecto incrível aqui é que Yamaguchi sobreviveu também a este ataque e hoje com 93 anos, depois de ser reconhecido como duplo hibakusha (sobrevivente das bombas nucleares), queixa-se de pouco mais do que a perda de audição num ouvido. Sem dúvida, uma história que inspira.

    segunda-feira, abril 06, 2009

    G20: Para além das palavras bonitas

    (Obama cultiva velhos e novos amigos. Kirsty Wigglesworth/Associated Press)


    O script da cimeira dos G20 em Londres poderia ter sido escrito há algumas semanas atrás. Para ser mais preciso, pela altura da reunião dos Ministros da Economia dos G20 no sul de Inglaterra. A declaração assinada pelos líderes mundiais e tornada pública na passada quinta-feira como a grande conclusão da cimeira, estava já escrita há algum tempo. O próprio The Guardian da semana anterior tinha publicado as seis resoluções da cimeira: a rejeição do proteccionismo; a concessão de maiores fundos para o FMI; a rejeição dos paraísos fiscais; a concordância vaga no estabelecimento de um sistema de maior regulamentação das instituições financeiras; a promessa de investimento numa economia verde - 'o Green New Deal'; e a restauração da confiança, crescimento e emprego mundiais através de planos de estímulo económico. Para alguns, talvez com maiores expectativas, como por exemplo o The New York Times, a cimeira foi por isso uma desilusão. Para outros, como o investidor George Soros, a cimeira 'delivered': fez exactamente o que era esperado dela e em dias de incerteza como estes, isso é, por si só, um êxito retumbante.

    No fundo, a verdade é que os líderes mundiais não precisavam de virar Londres de pernas para o ar para assinar uma declaração que já estava acordada - mesmo que à última da hora o Presidente Sarkozy tenha ainda tentado fingir que não, com ameaças melodramáticas. Os líderes foram a Londres por outro motivo que não consta de nenhuma resolução ou declaração comum mas que ficou bem patente para aqueles que seguiram o programa de festas de perto. Com efeito, a cimeira dos G20 em Londres marca, na teoria e na prática, o dealbar de uma nova ordem mundial. Uma ordem mundial em que os Estados Unidos não são a maior potência indiscutível; em que o Presidente Americano procura alianças com outros países para além da sua base tradicional; em que a China, o Brasil e a Índia se sentam à mesa de negociações com uma confiança e conforto desconhecidos; em que a Europa pouco mais pode do que desempenhar o papel do lobbista de uma qualquer moralidade. Entramos na era multipolar.

    Nesse sentido, e no meu ponto de vista, a Cimeira em Londres foi um sucesso. Ao contrário do que seria de esperar do antigo Presidente Norte-americano, Obama, com a sua propensão natural para a diplomacia e o consenso, tem permitido que esta transição decorra de forma suave e pacífica. A sua postura demonstra uma postura pragmática, que enerva os sectores mais conservadores da sociedade norte-americana que insistem na superioridade ('eleição divina') do seu povo, perante a admissão do declínio inevitável dos EUA. Simultaneamente, a sua estratégia permite aos EUA não só manter o estatuto como primus inter pares, mas também promover um sistema de relações internacionais, para além do enquadramento das Nações Unidas, baseado na igualdade entre as partes (pelo menos, entre aqueles que se sentam à mesa de negociações), no diálogo e na cooperação global. Em suma, um pequeno passo que poderá significar muito para nós e as gerações futuras.

    sábado, abril 04, 2009

    Terá Madonna o direito a adoptar uma menina do Malawi?


    (Madonna tem amor e muito mais para dar. Mas será que chega?)

    A minha resposta é não, mas sim.

    Aqueles que defendem o direito à adopção referem geralmente o contraste entre a vida num orfanato do Malawi e a existência desafogada em casa da Rainha do Pop. Em nome de que princípio ou de quem, dizem estes, se impede a criança de escapar a uma vida precária e miserável no Malawi para aceder aos mais extraordinários cuidados e privilégios? Ser adoptado por Madonna é afinal uma virtude que muitos e simpáticos mortais aqui neste canto do mundo trocariam pelo seu próprio destino. Porém, creio que esta visão cai no erro de assumir que o conforto material, o privilégio, a fama, o acesso a meios vedados à maior parte de nós podem ser única e simplesmente responsabilizados pela felicidade do indivíduo. Mera ilusão.

    Todas as crianças e pais têm o direito, o dever e a obrigação à família. Idealmente, essa família seria constituída pelos seus parentes mais próximos, os pais biológicos e os irmãos. Mas no caso de esses não estarem vivos, existem então os avós, primos e tios para dar apoio e carinho à criança. De acordo com a organização Save the Children (uma das NGOs que melhor funciona), só em casos de última instância, quando os parentes da criança não conseguem corresponder às necessidades da criança, ou quando a criança está realmente sozinha no mundo, se deverá avaliar a hipótese de adopção. Este não é o caso da pequena Mercy que Madonna quer adoptar, assim como também não foi o caso do menino malawi que Madonna adoptou há três anos atrás. Mercy, de quatro anos, perdeu a mãe pouco depois de chegar ao mundo, mas o seu pai e avós continuam vivos e mantiveram, pelo menos até agora, contacto com ela. De acordo as reportagens que li, as condições do orfanato onde Mercy residia eram boas e daí, aliás, a opção da família em mantê-la lá. Mercy não era, de modo algum, uma criança em sério risco de abandono ou de vida que estaria recomendada para um processo adopção internacional. Ela foi, pelo contrário, a criança que Madonna mais gostou como quem escolhe o cachorro mais giro no canil.

    Por este motivo, parece-me que retirar Mercy do seu ambiente original, afastá-la daqueles que constituem a sua família e levá-la para um mundo de contos de fado é uma solução demasiado violenta para resolver uma situação menos feliz. Se a intenção de Madonna fosse realmente melhorar as condições de vida de Mercy, e de outros órfãos no Malawi, poderia então criar um projecto de formação, saúde e desenvolvimento sustentável para a comunidade em que Mercy e a sua família estão actualmente inseridas. Poderia fundar uma escola de raparigas como fez Oprah Winfrey na África do Sul. Poderia apoiar projectos que promovam o planeamento familiar, o conhecimento sobre a sexualidade e o vírus da Sida e informação sobre conceitos básicos de higiene para evitar que mais crianças sejam colocadas na posição vulnerável em que ficaram David e Mercy. Enfim, haveria uma multiplicidade de ideias e projectos que Madonna poderia ter promovido para ajudar Mercy e a sua comunidade em vez de procurar a adopção.

    A estes argumentos, não é acessório, é claro, o facto de Madonna ser uma estrela internacional, detentora de um poder mediático incomparável. Na sociedade do ready-made, do consumo e do descartável, a adopção por Madonna de duas crianças africanas transmite a mensagem de que esta é a maneira de lidarmos com os problemas dos países em desenvolvimento: nós, os ocidentais, vivemos confortávelmente, enriquecemos, engordamos, e quando nos cansamos de tudo, decidimos ir buscar uma criança ‘engraçadinha’ a África para mostrar ao mundo que afinal temos escrúpulos. Mesmo que não seja este o estado de espírito de Madonna, e acredito que esteja bem intencionada, o problema principal é como o público vai interpretar as suas acções. Tratando-se de vidas humanos, o risco parece-me demasiado elevado para tolerarmos esta situação. Acima de tudo, no cerne da questão está a expansão e proliferação de redes de adopção ilegais em África, hoje já estabelecidas em alguns países, como no Gana ou na Nigéria, como verdadeiras indústrias de bebés. Por isso, ao olharmos para esta questão temos que pensar nos benefícios a longo termo para as crianças e as suas comunidades e não na obtenção de uma felicidade fugaz na perspectiva de alguns de nós.

    Porém, e depois de pensar algum tempo sobre a questão, cheguei à conclusão que a adopção de Mercy por Madonna é agora uma inevitabilidade. Como seria cruel para a criança, depois de toda a agitação que se gerou à sua volta, toda a expectativa, fazê-la regressar à sua situação original no orfanato. Como seria cruel e frustrante para ela, viver o resto da vida no Malawi sabendo que poderia ter tido uma vida privilegiada com Madonna. Agora que o processo está iniciado e foi tornado público, talvez o melhor para a menina seja levá-lo até ao fim – o que provavelmente acabará por acontecer. Mas, em princípio e como regra geral, estou contra.

    sexta-feira, abril 03, 2009

    Compreender o Paquistao - III


    (O mapa étnico do Paquistão.)

    7 - Os movimentos de auto-determinação e/ou os conflitos étnicos podem ter uma de duas origens: ou germinam da aglomeração de grupos distintos num território nacional criado artificialmente no final do colonialismo (o caso de muitos países africanos, por exemplo); ou da instrumentalização de uma identidade 'percepcionada' como meio de mobilização política (no caso português, temos o exemplo de João Alberto Jardim que dispõe da autonomia madeirense de cada vez que a sua popularidade desce). No Paquistão, os movimentos de auto-determinação resultam da mescla das duas hipóteses. Após a independência, os políticos paquistaneses formaram alianças entre aqueles que lhes eram mais próximos, geralmente indivíduos do mesmo grupo étnico (muitas vezes ligados por laços familiares) e não através de ideologias políticas. Nesta fase inicial, os políticos paquistaneses não dispuseram da retórica étnica como forma de mobilização popular - simplesmente, os partidos foram crescendo como de um ou outro grupo étnico. Desde modo, a prática democrática no país levou a uma fortalecimento das identidades étnicas ao revés de uma verdadeira identidade nacional paquistanesa. Este aspecto foi subsequentemente inflacionado pela colonização do Estado pelos militares, e do exército paquistanês por um grupo particular: os Punjabs.

    Com efeito, já durante a Índia Britânica, os inscritos do Punjab eram considerados excelentes militares e constituíam alguns dos regimentos mais eficientes e especializados. A independência e o conflito em Kashmir, apresentaram uma oportunidade aos nativos do Punjabs para tomar as rédeas do estado. Assim, os dois primeiros ditadores do Paquistão, foram ambos militares e do Punjab. Esta afirmação levou, em retorno, à afirmação das restantes identidades étnicas. Embora existam ainda outros grupos étnicos, os que mais se destacaram foram os Mohajirs (sensivelmente os 7 milhões de imigrantes e descendentes desses vindos da Índia), os Sindhis (de onde vêm os Bhuttos e que assumiram o poder na década de 70 e hoje), os Baluchs (que estão espalhados entre o território paquistanês e iraniano e que têm actualmente um energético movimento de auto-determinação), e o Pashtuns (que habitam o norte do Paquistão e o Afeganistão). O cada vez mais óbvio fracasso do Estado levou eventualmente à instrumentalização da etnicidade como meio político.

    (No tempo em que os Talibans eram recebidos pelo Presidente dos EUA.)


    8 - A nível da política externa do Paquistão, em torno da década de 80 ocorreram dois eventos que alteraram profundamente o curso do país. O primeiro foi a revolução islâmica no Irão em 1979. O impacto da revolução foi sentido a dois níveis: primeiro, o estabelecimento de um estado teocrático no país vizinho inspirou muitos a seguir o mesmo caminho no Paquistão - que o General Zia tentou controlar ao adoptar reformas religiosas; segundo, porque a revolução consistia uma afirmação da corrente Shia do Islão. Na medida em que o Paquistão é um país maioritariamente Sunni, mas com uma substancial e poderosa minoria Shia, rapidamente se tornou em palco de batalha entre Shias e Sunni. Dados concretos revelam que na década de 80 generosos fundos Iranianos (Shias) e Sauditas (Sunnis) foram direccionados para o estabelecimento de madrasahs no Paquistão. Foi aliás nesta veia que praticantes da vertente corrente conservadora Wahabi da Arábia Saudita, como Osama bin Laden, primeiro vieram até ao Paquistão.

    Mas a explosão das madrasahs e de grupos religiosos no país foi principalmente resultado do segundo evento crucial da década de 80: a invasão do Afeganistão pelas forcas Soviéticas. Para quem conhece alguma coisa da política externa americana do século XX, basta dizer que esta foi, de acordo com os registos oficiais, a maior 'covert operation' de sempre da CIA. Em poucos meses, os EUA inundaram o Paquistão com fundos e armas que permitiriam a guerrilhas organizadas ao longo da fronteira com o Afeganistão fazer contra-ataques ao exército Soviético. Todavia, mais do que a gigantesca proporção de armas, treino e dinheiro que os Americanos concederam a estes grupos, o ponto verdadeiramente desastroso da operação foi a forma como a CIA deu esse auxílio. Ao contrário de manter um controlo directo sobre esses recursos, a CIA passou-os aos serviços secretos Paquistaneses, o ISI, que, de um momento para o outro, passaram a controlar uma operação transfronteiriça de vários milhões de dólares. O ISI usou este fabuloso poder não só para criar milícias que combatessem no Afeganistão, mas também que infiltrassem no território indiano para combater em Kashmir (já que a este ponto, era melhor estratégia disponível ao exército paquistanês) e, finalmente, fortalecer o poderia da aliança entre militares e Punjabs no centro do poder, em Islamabad (capital construída de raiz na província de Punjab). Como forma de controlar estes grupos, o ISI dividiu e fragmentou-os de cada vez que cada um deles se demonstrou demasiado poderoso. Esta estratégia acabou por levar ao desgoverno e descontrolo dos grupos militares que operavam dentro do Paquistão que, combinada com o facto de algumas altas patentes militares estarem estreitamente ligadas com estes grupos, levou à situação caótica que vivemos hoje. Por isso, quando ocorre um grande ataque terrorista na região, ninguém sabe muito bem que levou a cabo a operação, quem está por trás e como enfrentá-los.



    FIM DA TERCEIRA PARTE