Na noite passada, entre as 11:44 da noite e as 04:45 da manhã, Barack Obama, actual Comandante Supremo das Forças Armadas norte-americanas, esteve na base aérea de Delaware para prestar homenagem a 18 soldados americanos caídos esta semana no Afeganistão. Durante cerca de 15 minutos, o novo Nobel da Paz permaneceu em continência, enfrentando o frio de uma noite outonal, enquanto decorria a cerimónia de transladação dos corpos para carrinhas funerárias, designada por 'dignified transfer'. Há apenas algumas semanas, porém, esta imagem não poderia ter sido registrada. Com efeito, a fotografia deve-se à recente revogação de uma lei, com mais de 18 anos, que proíbia a captação de fotografias de caixões de soldados americanos no regresso aos EUA. A lei agora em vigor, permite que os caixões sejam fotografados desde que as famílias dos soldados o permitam. Neste caso, das famílias dos 18 soldados mortos, apenas a do Sargento Dale R. Griffin, 29 anos, de Indiana, o consentiu. E assim, a imagem do seu caixão coberto por uma bandeira, chegou às capas de jornais em todo o mundo esta quinta-feira de manhã. Não porque o seu corpo seguia dentro do caixão, nem porque Outubro de 2009 foi o mês mais sangrento para as tropas americanas no Afeganistão desde o início da ofensiva em 2001.
A verdade é que a fotografia serve um propósito valioso ao Presidente norte-americano: o de provar ao público americano que está consciente dos custos da guerra, numa altura em que estará prestes a anunciar o reforço do contingente no Afeganistão. A comprovar esta intrepretação, ficaram as palavras do assessor de imprensa de Obama, Robert Gibbs, um dos poucos funcionários da Casa Branca a acompanhá-lo nesta missão nocturna, que afirmou que o Presidente estaria a concluir a sua decisão sobre o envio de mais tropas para o Afeganistão. Mais tarde, adicionou: 'A tarefa mais dura que ele (Obama) tem de fazer em qualquer dia é assinar a carta de condolências para aquele que perdeu um filho, ou uma filha, um marido, ou uma mulher, no Iraque ou no Afeganistão, ou a servir o nosso país noutro qualquer local ultramarino.'
O programa Question Time da BBC é o Prós e Contras dos britânicos. Ou melhor, o Prós e Contras é o Question Time dos portugueses, uma vez que o programa britânico existe há mais de 20 anos (ilustrando bem o atraso do nosso país nestas andanças da democracia; até porque na versão britânica a própria audiência interpela os convidados, ao passo que em Portugal, a audiência, em casa e no auditório, continua sujeita à perspicácia e omnipotência de Fátima Campos Correia). Enquando estive em Inglaterra, o Question Time era uma presença incontornável das noites de quinta-feira. Admirava o jeito objectivo de David Dimbleby - o apresentador -, a diversidade da audiência, a genuinidade das perguntas, mas no fundo sabia que muitos poucos, cada vez menos, pensavam da mesma forma que eu. O programa encaminhava-se lentamente para a sessão derradeira, em que a política séria, das causas e das pessoas comuns daria lugar à política espectáculo.
Na semana passada, enquanto andava às voltas com raízes cúbicas e geometria, tive a percepção de que algo de muito grave teria, ou estaria para se passar, no Question Time. Subitamente, o Question Time tornou-se o tema de TODOS os meios de comunicação britânicos, desde o The Sun ao The Guardian, e transbordou para alguns media internacionais. Em Portugal, os jornais fizeram apenas referência ao caso, geralmente divorciadas de qualquer clarificação sobre o programa, os intervenientes ou sobre o caso em si. Tratou-se do convite do programa a Nick Griffin, Presidente do British National Party (BNP). Para quem não conhece esta aberração política, o BNP é um partido que restringe a militânicia a membros dos grupos étnicos indígenas ao Reino Unido; acredita que existem diferenças biológicas entre raças que determinam as suas características e o seu comportamento, que a preferência e o orgulho pelo grupo étnico de cada um faz parte da natureza humana; defende que devem ser dados incentivos 'firmes' aos imigrantes e seus descendentes para que regressem 'a casa' e que assim se possa reconstruir a génese essencialmente 'branca' da sociedade britânica, tal como existia até 1948. A estes preceitos absurdos, o partido acumula um historial de abuso verbal e incitamento à violência contra as minorias que não fica em nada aquém das propostas de Hitler ou de Mussulini antes de chegarem ao poder.
Julgar-se-ia que nos dias que correm, e depois dos brutais acontecimentos da história recente (dos quais o Reino Unido, principalmente o mais nacionalista e etnocêntrico, tanto se orgulho em ter participado), ninguém se sentiria atraído por tais ideias. Puro romantismo. Nicolau Maquiaveli acertou no centro nevrálgico da teoria política quando escreveu que 'o medo triunfa sobre todas as outras forças.' A ascenção do BNP na cena política britânica está-se a tornar num caso paradigmático. Deparando-se com uma crise económica voraz, um mal-estar social generalizado e uma classe política descredibilizada (ainda se lembram do escândalo dos gastos dos deputados na House of Commons? Não foi assim há tanto tempo...), os eleitores britânicos viraram à direita. À extrema-direita. Nas eleições europeias, o BNP elegeu dois deputados ao Parlamento Europeu (um dos quais é este senhor). Já em Setembro, Griffin gabou-se publicamente de o BNP ter, numa só noite, recrutado 3000 novos membros, um recorde histórico para o partido.
Foi neste contexto que o Question Time anunciou a participação de Griffin no programa da semana passada. Os sectores mais liberais consideraram o convite como uma oportunidade para Griffin pregar a sua distorcida ideologia a uma audiência maior (pelos vistos, foi depois de uma aparição televisiva que Jean Marie Le Pen conseguiu destacar-se) e organizaram-se. Destacados membros do governo Trabalhista, como Lord Mandelson e Jack Straw, que participou no programa, alistaram-se contra o BNP - tendo em vista os seus próprios dividendos eleitorais, claro está. Mas não foram os únicos. Judeus, muçulmanos, gays e religiosos juntaram-se por uma única e inédita vez numa só voz contra Nick Griffin. Os resultados estão bem evidentes nestes dois vídeos: no primeiro, Griffin é distroçado em directo pelo paínel, pela audiência (o discurso do tipo que fala é espectacular) e até pelo próprio Dimblebly ('Are you laughing?'); no segundo, os manisfestantes anti-BNP geram o caos nos estúdios da BBC (quando foi a última vez que os portugueses tentaram invadir a televisão pública?). No entanto, e apesar desta onda de contestação contra o BNP, sondagens levadas a cabo após a emissão do programa revelaram que não só o número de pessoas que declara a intenção de voto no BNP é maior do que antes (3%), o número de eleitores que considera votar no BNP aumentou para 22%.
Dados arrepiantes que denunciam que os temas que julgavamos estar mortos, e aos quais a história não regressaria jamais, estão vivos e revigorados. O pior é saber que pela transparência e o sensacionalismo do Reino Unido, que tende a repiscar e exponenciar todas as controvérsias públicas, este caso representa apenas a ponta do iceberg. A verdadeira ameaça está na Europa continental, onde Geert Wilders e outros avançam a passos largos para se afirmar. Preparem-se!
Como sabem, não tenho tido oportunidade de publicar com regularidade no blog. Portanto, em primeiro lugar, e se pertencem ao grupo de pessoas que continua a visitar esta página mesmo sabendo que poderá não ter nada de novo: OBRIGADO! E já que estamos neste espírito de troca de palavras prazenteiras, li esta semana um artigo fantástico na melhor revista do mundo (confio que a este ponto todos saibam a qual me refiro) sobre a atribuição do Prémio Nobel da Paz a Barack Obama, Presidente dos EUA. Decidi então transcrever o texto para o blog e oferecer-vos as palavras e a sabedoria de Hendrik Hertzberg (editor senior e escritor da revista) sobre um dos acontecimentos mais inesperados e avassaladores de dias tempos tão preenchidos e multifacetados como os nossos. Perdoem-me apenas, pois não resisti à tentação de rematar o texto com alguns comentários meus:
If President Obama really had to get a gift postmarked Scandinavia this month, he would probably, on the whole, have preferred the Olympics. (Metáfora vívida e engenhosa: isto é o que se chama um excelente início). At least at the Olympics the judges wait till after the race to give you the gold medal. They don’t force it on you while you’re still waiting for the bus to take you to the stadium. They don’t give it to you in anticipation of possible feats of glory, like a signing bonus or an athletic scholarship. They don’t award it as a form of gentle encouragement, like a parent calling “Good job!” to a toddler who’s made it to the top rung of the monkey bars. It’s not a plastic, made-in-China “participation” trophy handed out to everyone in the class as part of a program to boost self-esteem. It’s not a door prize or a goody bag or a bowl of V.I.P. fruit courtesy of the hotel management. It’s not a gold star. It’s a gold medal. (Belisquem-se!)
We can take it as a sign of what a lucky fellow our President is that winning the Nobel Peace Prize has been widely counted a bad break for him. (Adorei, embora só tenha compreendido a frase numa segunda leitura. Quer isto dizer que Obama é um tipo com tanta sorte que, quando ganha o Prémio Nobel da Paz, os comentadores acham que é azar.) Barack Obama has come very far very fast. Five years ago, not long after finishing a distant second for a Chicago congressional nomination, he was still one of the hundred and seventy-seven members of the Illinois state legislature. Four years ago, he took his seat in the United States Senate, ushered there not only by his own undoubted talents, but also by the serial self-destruction of his opponents. One year ago, he won the Presidency with a margin of victory – nine and a half million votes – that was the largest since 1984; absent the tailwind provided by his predecessor’s abysmal record, however, that margin would have been far smaller, possibly even non-existent. (Talvez exagerado: acredito que o carisma natural de Obama impor-se-ia inevitavelmente nas urnas perante o cinzentismo de Clinton e McCain) He is certainly one of fortune’s favourites. He came into office on a tide of euphoria. Lately, though, his supporters have been experiencing a vague sense of disappointment. He may have saved the world from a second Great Depression and all that, but the jobless rate keeps on climbing, the planet keep on heating up, Guantánamo keeps on not getting closed, and roadside bombs keep on exploding. He’s had eight whole months, and still hasn’t signed a comprehensive health-care bill. Given that his perceived political problem is exaggerated expectations, does he really need a Nobel Peace Prize before he has actually made any peace? (Muitos dos pontos referidos neste parágrafo correspondem aos mencionados por mim no post sobre a atribuição do Nobel a Obama. No entanto, julgo que Hertzberg enunciou aqui melhor o potencial prejuízo do Prémio Nobel para Obama neste momento: a última coisa que necessita o político que sofre de expectativas exageradas é de ganhar um galardão antes de atingir os objectivos propostos.)
The award to Obama illustrates, among other things, the difference between the “hard” and the “soft” Nobels. The prizes for physics, chemistry, and medicine are never given for trying, only for succeeding. Also, there is no apparent attempt to achieve regional, national, or ethnic balance. (À primeira vista, esta frase parece perdida. Só depois percebi que ela se refere ao facto de, nessas três categorias, não existe, pelo menos aparentemente, uma tentativa de harmonização de quotas regionais, nacionais ou étnicas – os prémios são, pura e simplesmente, entregues aos melhores. De notar que Hertzberg ‘esquece-se’ de referir os géneros.) The same cannot be said of the literature prize, which frequently go to authors who write in languages that few if any of the judges –eighteen grandees of the Swedish Academy – can read. Anyhow, literature is a matter of taste, which is why, among American authors, Pearl S. Buck (Uma das favoritas da minha professora de História no secundário. Nobel de 1938) was deemed worthy of the honour while Henry James was not. (The rooster of literary losers, A to Z, also includes Auden, Borges, Conrad, Joyce, Kafka, Nabokov, Proust, Tolstoy, Twain and Zola.) (Esta é uma daquelas listas que aquelas pessoas que gostam de se passar por cultíssimas, devia, memorizar para depois debitar em conversas de jantar como se ditassem um receita de mousse de chocolate – glória garantida). As for the relatively new economics prize (full name: the Sveriges Risbank Prize in Economic Sciences in Memory of Alfred Nobel), it is neither hard or soft, just kind of mushy (‘bonzinho’) – a Golden Globe, not an Oscar (cartoonmente falando, ‘Glup!’).
The peace prize, first given in 1901, has always been the trickiest of the lot. For the first fifty years or so the judges, a five-member committee appointed by the Norwegian parliament, almost always honoured a person or an organisation devoted to working, in the words of Alfred Nobel’s will, “for fraternity between nations, for the abolition or reduction of standing armies and for the holding and promotion of peace congresses.” – a formula that excluded, for example, Mohandas Gandhi. (Fica assim esclarecida essa monumental lacuna assim como a curiosidade de, na época em que o Nobel da Paz foi criado, o conceito de paz consistir apenas no combate ao belicismo.) After the Second World War, the judges’ definition of peace grew more capacities, producing laureates like Martin Lurther King, Jr., Aung San Suu Kyi, and the Dalai Lama. But the choice has always been, as a former chairman of the judging committee wrote in 2001, “to put it bluntly, a political act.” (Novo ‘Glup!’)
The chairman of the Republican National Committee would agree. He quickly fired off a fund-raising e-mail head “Nobel Peace Prize for Awesomeness,” calling the choice proof that “the Democrats and their international leftist allies want America made subservient to the agenda of global redistribution and control.” (Nada de novo.) A trifle overwrought? Perhaps. Still, to be fair to the chairman, there’s little doubt that for eight years the most prominent figure hovering over the Nobel Committee’s deliberations was not any of the nominees under consideration; it was George W. Bush (‘El Diablo’, parafraseando Chavez). Jimmy Carter richly deserved his belated prize – he is as responsible as were Anwar Sadat and Menachem Begin (Nobel de 1978) for the thirty years’ peace between Israel and Egypt – and Al Gore, who sounded the tocsin (‘sino’) on climate change, deserved his. But in neither case did the judges try very hard to hide their satisfaction in delivering a rebuke to Bush. This time their message was one of relief – and of hope and confidence, not just in Obama himself but in a United States that has reembraced, as the prize announcement put it, 2that international policy and those attitudes for which Obama is now the world’s leading spokesman.”
A few hours after the news from Oslo, Obama, looking a little abashed (Não é verdade.), even a little comfortable (Também exagero.), stepped up to a portable podium in the Rose Garden and spoke of the honour that had come to him so soon – too soon, even many of his admirers admit (Hertzberg denuncia-se) – and so unexpectedly. “Let me be clear,” he said and went on, first acknowledging the obvious:
“To be honest, I do not feel that I deserve to be in the company of so many of the transformative figures who’ve been honoured by this prize – men and women who’ve inspired me and the entire world through their courageous pursuit of peace. But I also know that this prize reflects the kind of world that those men and women and all Americans want to build, a world that gives life to the promise of our founding documents. And I know that throughout history the Nobel Peace Prize has not just been to honour specific achievement; it’s has also used as a mean to give momentum to a set of causes. And that is why I will accept this award as a call to action, a call for all nations to confront the common challenges of the twenty-first century.”
After a few more sombre words, he turned and walked back into the West Wing, there to attend another in a series of meetings on the strategy that he soon must set for the war in Afghanistan. The prize is won, but the peace, as always is elusive.” (Afeganistão! O elefante cor-de-rosa faz uma entrada triunfal, no último parágrafo, no artigo. De um modo geral, a ideia que fica é que Hertzberg, tal como muitos de nós, não atribui valor significante aos Prémios Nobel. São títulos que se concedem, frequentemente por motivos políticos e circunstanciais, e que se traduzem em pouco na vida real. Por outros palavras, os mais de cem de história dos Prémios Nobel não impediram que algumas das maiores atrocidades (sendo que, em algumas casos, a honra se destinou directamente aos envolvidos, como Yasser Arafat) se tenham cometido ao longo desse preciso período. Em suma, a paz não se constrói com prémios.)
Faz hoje 87 anos que a melhor escritora portuguesa viva nasceu. Agustina Bessa Luís deu as primeiras bafejadas de ar em Vila Meã, Amarante, num domingo auspicioso de 1922. Ainda jovem, Agustina demonstrou interesse e vocação para a literatura, tendo passado grande parte da sua juventude a retratar o mundo rural do Minho e Douro. Foi, no entanto, por intervenção do marido, Alberto Luís (quem transcreveu à máquina os seus textos, eternamente escritos a letra azul e apertada em folhas de papel) que a sua primeira obra, Mundo Fechado, foi publicada em 1948. Desde então, Agustina - ou a Amarantina, como mais gosta de ser tratada - publicou uma vastíssima obra, ao ritmo de um livro por ano, da qual se destacam a Síbila, Fanny Owen, A Corte do Norte e inúmeros e exímios contos como O Javali. Seria um verdadeiro crime, para Portugal e os Portugueses, não celebrar esta figura incontornável da literatura portuguesa que, perenemente humilde e generosa, atravessou as décadas como uma ilustre desconhecida das artes nacionais. Acredito que é esta a estirpe de artista que mais merece enaltecer com prémios e louros: os que dão a alma sem presunção ou interesse. Por estes motivos mas também por muitos outros conhecidos apenas aos leitores de Agustina, o maior escritor português vivo abandona hoje o seu exílio numa ilha atlântica para lhe fazer uma homenagem pública na Casa Fernando Pessoa em Lisboa, por volta das 18h30. Caso fiquem tão desconsolados como eu por não poder assistir ao evento, deixo-vos então dois prémios de consolação: o primeiro, é um longa homenagem feita este ano pela revista LER a Agustina, com testemunhos de várias personalidades destacadas das artes e vida pública portuguesa como Lídia Jorge, Eduardo Lourenço e Diogo Freitas do Amaral (aqui); e um pequeno texto de Agustina sobre uma visita à Quinta das Lágrimas em Coimbra. Para vosso deleite:
Fui há muitos anos à Quinta das Lágrimas, onde se diz que Inês foi morta. Lembro-me que se transpunha o rio atravessando uma ponte de madeira cujas tábuas gemiam e baloiçavam. Parecia uma ponte militar, para assédio à cidade.
A Quinta das Lágrimas esteve para ser comprada pelo meu pai quando ele veio do Brasil e se deixava sugestionar pelas lendaz históricas e coisas famigeradas de glória antiga. Havia uma enorme árvore da cânfora nos arredores da casa, que era como uma estufa, com muitos vidros e caixilhos descascados. Numa caleira de pedra corria a água. sobre um líquen vermelho. Dizia-se que era «o sangue de Inês». Como disse, a moradia era decepcionante, um pouco ao estilo dos chalés de Sintra em que veraneavam os banqueiros do século XIX e os ricos-homens dos cafezais de S. Tomé. Estavam na moda os jardins de Inverno, e nesse tipo de casas havia pavilhões envidraçados onde se tomava chá e bebia água de sifão. Mas não posso garantir que na Quinta das Lágrimas fosse assim.
Era numa tarde muito quente, em Maio. O calor de Maio, em Coimbra, traz no coração o perfume da tília em flor; desde o alto do Jardim da Sereia ele abate-se até ao fundo da cidade como um lenço abafante e suave. É um calor e um perfume que deprimem. Acompanham os estudantes quando eles revêem a matéria, fumando com gesto irritado e deixando o olhar parar nas varandas da frente onde outros estudantes mourejam nas páginas das sebentas. Mas, voltando à Quinta, que está num vale sem horizontes, que seriam dantes os fecundos campos de regadio, com manantes a visitar-lhe os muros para roubar capôes e melancias: estranhei-a, de tão deserta. Não havia um só visitante, ou um morador; e não vi também guardião. Só um cãozito sujo, de pêlo em que a lama secara, me lançava de longe alguns ladridos curtos, sem cólera, por simples obrigação.
A casa não tinha cortinas nem vestígios de ser habitada. Havia, em volta, alguns canteiros onde crescera a beldroega e umas açucenas tão altas que podiam chamar-se o bordão de S. José. Na parede, uma mancha de água que se infiltrara pelo telhado parecia a sombra de uma mulher; uma mulher alta e corpulenta, que risse, os ombros deitados para trás. Ouvi, ou pareceu-me, um arrastar de passas, mas durou pouco; tudo ficou silencioso outra vez. Porém, quando eu já me afastava vi, sentada numa velha cadeira de verga, uma senhora ainda nova, com uns óculos na mão direita e que olhava para mim com uma frieza condescendente. Se era a dona da casa era uma excêntrica, porque estava vestida com uma saia cor de ferrugem, tendo por cima um vestido verde, aberto, e um cinto dourado. Os cabelos usava-os soltos e eram de um belo loiro carregado com reflexos mais claros sobre as orelhas. O rosto era rosado, mas notava-se que usava carmim, muito fino e brilhante. Estendeu as pernas com um movimento preguiçoso; estavam nuas e eram tão brancas como o ventre das trutas. Até certo ponto parecia muito uma lavradeira abastada, dessas do Alto-Minho que se descalçam ao fim das tardes de Verão para ir regar, [...]
AGUSTINA BESSA LUIS, “Adivinhas de Pedro e Inês”, GUIMARÃES & C.a, EDITORES, 1983, pp. 7, 8
(Antes de ser Presidente, Obama foi captado pelo fantástico fotógrafo (pornógrafo?) Terry 'T-bone' Richardson. Mais aqui.)
Em primeiro lugar uma palavra de contrição a todos os leitores pela falta de comentários nos últimos dias. A verdade é que tenho andado muito ocupado com as candidaturas ao doutoramento e a actividade de bloggista ocupa mais tempo e disponibilidade das que posso sensatamente despender neste momento. Deverei continuar neste ritmo até ao início de Novembro, pelo que poderão contar com uma terrível escassez de comentários. Não me esqueci também da segunda parte do artigo sobre o 'caso das escutas': já está quase escrito, só preciso de limar algumas arestas. Acontece que, por vezes, a vida pública quotidiana toma caminhos inesperados que nos resgatam da apatia e nos atiram para a frente do ecrã do computador cliquando sofregamente em letra após letra.
A atribuição do Prémio Nobel da Paz de 2009 a Barack Obama é um desses momentos. Parece-me precipitado. Não duvido que Obama o merecesse: a sua chegada à Presidência dos EUA representa uma retumbante vitória na longa caminhada do movimento dos direitos civis dos afro-americanos que não pode ser dissociada do homem que a concretizou; o discurso de Barack Obama na Universidade do Cairo assim como as várias entrevistas e declarações que tem concedido a televisões árabes tem contribuído incomensuravelmente para apaziguar as tensões interculturais que marcaram a primeira década do século XXI; e, por fim, a sua insistência no papel da ONU e em especial num enquadramento mais inclusivo das relações internacionais são passos no sentido certo que certamente terão efeitos frutivos no futuro. No entanto, a nível concreto na política externa, Barack Obama ainda não atingiu nada de substancial: o exército dos EUA continua envolvido em duas operações militares (se uma continua no mesmo estado em que estava quando Bush abandonou a Presidência, a outra está cada vez pior); a prisão de Guantanamo ainda não foi totalmente desmantelada; o Irão e a Coreia do Norte continuam a procurar armas nucleares, deitando por terra o argumento de que Barack Obama tem impulsionado o movimento anti-nuclear (já diz o ditado que ‘de boas intenções, está o inferno cheio’); e o acordo de paz no Médio Oriente parece cada vez mais distante. A verdade é que ao longo do primeiro ano da sua Presidência, Obama concentrou-se, e bem, em encontrar uma solução para a crise económica americana e global. Está portanto ainda por avaliar, com pleno conhecimento dos seus sucessos e fracassos, a forma como Obama conduzirá a política externa americana: até por que a guerra em AfPak ameaça tornar-se num novo Vietname (não sou eu que o digo, é o próprio Richard Holbrooke, representante especial de Obama para a região). Curiosamente, Obama é já o quarto Presidente Americano a ganhar o Nobel da Paz, embora o menos 'accomplished' no momento da atribuição: o primeiro foi Ted Roosevelt em 1906 pela celebração do acordo de paz entre a Russia e o Japão; o segundo foi Woodrow Wilson pelo esforço de paz no final da primeira Guerra Mundial; e o terceiro foi Jimmy Carter em 2002, já depois de ter abandonado o cargo, pelo empenho pessoal na solução de conflitos internacionais e nas causas da democracia e dos direitos humanos.
Poderia também ser dito que a Comité Norueguês decidiu premiar o povo americano pela escolha de um Presidente mais ajuizado do que o seu antecessor. Porém, ser melhor Presidente dos EUA do que George W. Bush não justifica em si só a atribuição do Prémio Nobel da Paz (gostaria de saber o que pensa Bill Clinton, agora Gore e Obama são ambos Prémios Nobeís). Em última análise, temo que a atribuição do Prémio Nobel ao Presidente Obama no primeiro ano de mandato possa ser mais prejudicial do que benéfico: por um lado, reacende expectativas exageradas sobre o possível papel do Presidente dos EUA para ‘fazer o bem como um messias’ – prendendo-as ao imperativo de justificar o Nobel, o que poderá desequilibrar artificialmente o status quo em favor da parte mais forte (ou seja, a posição dos EUA no Iraque, no Irão, na Coreia, no Afeganistão, no Paquistão, na Palestina, em Israel, etc); e, por outro lado, poderá dar azo a leituras conspirativas sobre a fantástica ascensão de Obama no palco mundial (aliadas a alguma inveja, é certo) que poderão minorar, na percepção pública, os sucessos da actual administração americana assim como o próprio Prémio Nobel da Paz.