A Gaivota Farragulha

    terça-feira, dezembro 29, 2009

    A palavra portuguesa do ano


    (Em 2009, a paranóia regressou a Portugal. Tado)



    Todos os anos, nos dias que antecedem a alteração do calendário, os medias internacionais entretém-nos com listas de tudo o que foi mais e menos dos últimos 360 dias: as melhores músicas, os piores filmes, os vídeos mais visualizados no Youtube, as fotografias mais marcantes, as mais vergonhosas calinadas políticas, os mais esquecíveis momentos do desporto e as mais aniquiladoras catástrofes naturais, entre os possíveis tops 10 de utilidade e critério duvidosos. No fundo no fundo, o que importa é ser mais original e mais arrojado para não desapontar o apetite voraz dos consumidores por mais informação a menos sacrifício – ora pois, nas listas de fim de ano, os acontecimentos vêm já devidamente acondicionados em saquinhos herméticos e hierárquicos, respectivamente rotulados por uma sumária narração da história que compraz na plenitude o diminuto espaço cerebral dedicado ao armazenamento e laboração de informação inter-pessoal do homos contemporaneus. Este ano, o potencial para a elaboração das mais mirabolantes e magnânimas listas é particularmente prodigioso visto tratar-se este também de uma mudança de década o que, cronologicamente falando, corresponde à travessia da zona desmilitarizada que separa a Coreia do Norte da do Sul.

    Navegando por este oceano de informação ‘prêt-à-manger’, o observador comum sente-se sempre cativado em excesso por uma ou outra categorização. No meu caso, é a eleição da palavra do ano*. O raciocínio é a improbabilidade de existir uma palavra para cada ano: primeiro, porque as palavras não aparecem do nada e, na maior parte dos casos, as palavras eleitas para cada ano já existiam nos anos precedentes; segundo, porque as palavras têm diferentes sentidos para indivíduos heterogéneos, sendo que não existe uma única palavra que abranja o mesmo significado para todos nós num determinado momento, mesmo que no espaço limitado de um ano; terceiro e derradeiro, porque existem demasiados acontecimentos e circunstâncias num ano para se compactar tudo numa só palavra. Mas já que estamos no reino da patetice, julgo-me sensato em aderir à melhor e mais desavergonhada parvoíce de entre todas as listas de ano novo: a lista da palavra do ano.

    Tanto quanto sei, a moda ainda não pegou em Portugal, país que ainda não se conseguiu olvidar por completo dos chavões da saudade, do fado, futebol e Fátima. Por isso, decidi escolher e anunciar em primeira mão aos meus leitores a palavra portuguesa do ano. Ao contrário das suas congéneres estrangeiras, a palavra portuguesa do ano tem pouco de progresso; pelo contrário, a palavra portuguesa do ano de 2009 assemelha-se mais a um regresso às origens. Não é uma palavra nova, nem sequer poderá ser conotada com um fenómeno inovador; a palavra portuguesa do ano pertence ao nosso léxico desde que dois portugueses se tornaram vizinhos e começaram a intrometer-se na vida um do outro. Meus amigos e minhas amigas, tenho a infelicidade de vos anunciar que a palavra portuguesa do ano de 2009 é escutas. No plural.

    O tema vinha de trás. Há dois anos andava tudo alarmado com a suspeita do Procurador-Geral da República de que o seu telefone estaria sob escuta. Este ano, porém, a problemática sobre as eventuais escutas a dignitários de cargos públicos e privados alcançou novas proporções. Em 2009 ficamos a saber que não só o Presidente da República suspeita que o Primeiro-Ministro o esteja a espiar, como as conversas do Primeiro-Ministro com o Vice-Presidente do maior banco privado português andaram a correr escritórios da PJ e do Ministério Público. Em 2009, tivemos duas eleições centrais para o curso do país que foram saqueadas pelo tema das escutas, cujo saldo final ainda iremos descobrir em 2010. Ficamos também a conhecer que existem em Portugal vários organismos que, à revelia da lei, escutam conversas e que o material para tal fim se compra facilmente na internet, ou então a espiões israelitas, americanos e russos que continuam a passear na linha de Cascais como no tempo da Segunda Guerra Mundial.

    Porém, pior do que as próprias escutas, é o clima que elas instauram no país: em 2009, regressamos ao Portugal das suspeitas, das paranóias e das perseguições. Um Portugal em que ninguém está a salvo de ser espiado, onde os indivíduos suspeitam um dos outros, onde os políticos disparam em praça pública aquilo que podia ser negociado em privado. De certa forma, parece que em 2009 se voltaram a despertar os mais tristes instintos na sociedade portuguesa do bufo, do delator e do perseguido. E as escutas, assim como os políticos e jornalistas que contribuíram para que elas dominassem a actualidade nacional, merecem ser responsabilizados por isso. Em última análise, ‘escutas’ é a palavra certa para descrever um ano mau para Portugal. Mais do que a economia, é o próprio tecido social que agora se deteriora. Esperemos que em 2010 haja uma palavra mais positiva para eleger aqui.

    Um bom ano novo a todos!





    * Este ano a palavra do ano na língua inglesa eleita pela editora de dicionários Merriam-Webster é 'unfriend': no sentido de desfazer-se de amigos no Facebook. Com o Nobel de Obama, a reforma do serviço de Saúde norte-americano, a morte do Rei da Pop, eleições por toda a parte, o fracasso das negociações do novo acordo para o clima, o recomeço da Guerra em Af-Pak, quem se lembraria das vicissitudes da amizade virtual? Ninguém, é aí que está a graça.

    quarta-feira, dezembro 16, 2009

    O abismo iemenita

    Afinal, os EUA não estão apenas envolvidos em duas operações militares além-fronteiras... um cheirinho do que vem aí:

    sexta-feira, dezembro 04, 2009

    O dia em que Bush convenceu Blair


    (Uma saudação às armas. Daily Telegraph)


    O começo do julgamento de Khalid Sheikh Mohammed, o suposto ‘mastermind’ dos atentados de 11 de Setembro de 2001, tem percorrido as páginas dos medias em todo o mundo sob o epítome de ‘o julgamento do século’. Porém, para além do folclore e do sentimento de vindicação que poderá provir às famílias das vítimas, pouco resultará do caso em termos de revelações sobres os incidentes dos últimos dez anos. Para além do mais, colocar o apelido ‘o julgamento do século’ a um caso que se refere ao primeiro ano do tal século parece-me precipitado. Quem sabe se não existirá um Nuremberga do século XXI?

    Curiosamente, ao mesmo tempo que se inicia este julgamento decorre no Reino Unido um inquérito histórico que tem sido, em larga medida, ignorado pelos medias – o inquérito oficial sobre a Guerra no Iraque (‘Iraq War Inquiry’). Este sim, o julgamento da década. Embora não o primeiro do género no Reino Unido, este inquérito irá investigar e revelar, pela primeira vez, o conteúdo de documentos classificados e interrogará também figuras capitais do Governo Britânico na caminhada para a Guerra do Iraque, entre as quais estarão Tony Blair e Gordon Brown (que serão chamados a depor no próximo ano).

    Na semana passada, o painel de investigadores interrogou Sir Christopher Meyer, embaixador britânico em Washington D.C. entre 1997 e 2003 (DC Confidential, livro de memórias publicado em 2005). Entre as várias revelações apresentadas sobre as relações transatlânticas no ante- e pós-invasão, Meyer confessou a sua suspeição pessoal de que a decisão de Blair foi tomada após uma reunião a dois com Bush no rancho de Crawford, no Texas, em Abril de 2002. Segundo o ex-embaixador, até então, Blair teria preferido avançar para a guerra com aval das Nações Unidas. No entanto, alguns dias depois do encontro, Blair assumiu publicamente, pela primeira vez, a hipótese de ‘regime change’ no Iraque. O que terá dito Bush a Blair para o convencer?

    Tal a obliquidade das informações que dispomos sobre a Guerra do Iraque apenas me recorda o caso do assassínio de Anna Politkovskaya: sabemos a hora exacta do crime, vimos o assassino a chegar e a abandonar o local crime, mas desconhecemos como decorreu ao certo o crime. Porém, neste caso, o ‘missing link’ seguirá provavelmente os dois protagonistas para debaixo de terra.


    Caso estejam interessados em saber mais sobre este inquérito, poderão encontrar um Q&A no site da BBC News. E também aqui um reportagem em vídeo.

    quarta-feira, dezembro 02, 2009

    Uma festa cigana


    (Pelos menos, escolheram azul para a Torre de Belém. AFP)


    Lembram-se da cerimónia de assinatura do laxativamente-apadrinhado Tratado de Lisboa no Mosteiro de Belém, da Dulce Pontes a berrar ao microfone hits de tempos passados, do ar enfadado de Sarkozy enfiado entre os muitos efusivos Sócrates e Barroso, do passeio de 100 metros dos chefes de estados no metro de superfície, dos apupos da multidão em frente ao Palácio de Belém, da tão badalada ausência de Gordon Brown? Pois bem, tudo isso não foi mais do que um austero ensaio para a festa carnavalesca com que ontem se celebrou a entrada em vigor do Tratado de Lisboa.

    Quer dizer, festejou-se no dia em que se assinou o papel e volta-se a festejar no dia em que o tratado entrou em vigor. Por este andar, pode ser que se proclame feriado no dia em que o Tratado de Lisboa for revogado. O que vale é que das gentes que importam, categoria que não inclui os VIPs porque esses acudiram em massa, estavam apenas três Primeiros-Ministros (o nosso, o da Espanha e o da Suécia – note-se que a presença deste último se deve ao facto de o seu país deter a Presidência da UE), um Presidente da República (o nosso) e três figuras de destaque da hierarquia da UE (o nosso, o Belga e o Polaco). Qualquer dia, passo a eleger políticos na medida dos que vão a estes Eventos e dos que têm assuntos mais prementes para resolver…tipo Governar um país!