A Gaivota Farragulha

    domingo, fevereiro 28, 2010

    Dia 4 - Uma casinha em Batroun

    Da espontaneidade nasceu o momento. 
    Tínhamos acabado de entrar na vila pescatoria de Batroun, outro cabo a norte de Beirute, quando o Deen se lembrou de telefonar a sua dentista e senhoria (uma combinação que, de resto, me pareceu pouco recomendável). Tama, pertence à comunidade arménia do Líbano, e tem um pequeno apartamento em Batroun, para onde se retira quando o corre-corre de Beirute se torna insustentável. Para nossa sorte, calhou neste dia quente mas lacrimoso de fins de Fevereiro estar em Batroun e ter a amabilidade de nos convidar para um café em sua casa.
    A casa de Tama é um paraíso para os que, como eu, são eternamente atraídos pela vertigem longitudinal do mar. Localizada num edifício em pedra do centro histórico de Batroun, junto da igreja matriz da cidade, a casa beneficia de uma varanda generosa sobre as ruelas empedradas, mas sobretudo, sobre o mar que se insinua a distancia num azul profundo. A casa propriamente dita reteve os traços principais da arquitectura, nomeadamente três janelas de vidros coloridos (do género vitrais, porem os vidros são maiores) e as paredes em pedra que se encontram no tecto em arcos quebrados.
    Entretanto, chega o cafe e da conversa sobre a nossa passagem pelo Líbano, passamos rapidamente para a temperatura do mar, a comida levantina, e, finalmente, o almoço. Tinhamos planeado seguir para Tripoli, mas a varanda de Tama em Batroun revelou-se demasiado apetitosa. O almoço, gozado num restaurante um pouco mais abaixo, observado os peixinhos numa baia de águas turquesas, consistiu em atum cru com molho de sésamo e gengibre e durou o resto da tarde. Certamente, a não esquecer.

    sexta-feira, fevereiro 26, 2010

    Dia 3 - Byblos

    Byblos, ou Jbail em arabe, e uma cidade matreira e irão já perceber porquê.
    A cidade derrama-se pela extremidade de uma baia a norte de Beirute e entra-se nela vindo da auto-estrada, ou seja, do lado das montanhas em direcção ao mar. À primeira vista, Byblos é recente e feia, um pequeno aglomerado de edificios insensatos. Certamente, quem conhecer apenas esta perspectiva da cidade, desconhecera que no seio de tão inestetico mobiliario urbano se esconde uma gloria da historia da humanidade.
    Situado na ponta ocidental da cidade, estrategicamente colacado sobre um massico rochoso ladeado pelo mar, encontra-se o centro arqueologico de Byblos. Este nao é um mero museu ar ao livre; mas sim, o comprovativo in situ que Byblos é uma das mais antigas cidades continuamente habitadas pelos homens.
    Dentro do recinto, lado a lado, sobrepondo uns aos outros, os vestigios documentam a historia quotidiana da humanidade desde os tempos pré-historicos até a idade media. Por Byblos, passaram os Egipcios (que precisamente deram o nome a cidade, uma vez que aqui vinham comprar papirus), assirios, babilonios, gregos, romanos, arabes e cruzados. Byblos e um daqueles locais onde a esmagadora magnitude da historia confere um ambiente fantastico, como se o tempo se detivesse, ao nosso passeio pelo local. Tudo isto se desenrola, enquanto a agitada Beirute se ve atraves da neblina. Afinal, existe mesmo a maquina do tempo.

    quinta-feira, fevereiro 25, 2010

    Dia 2 - Rumo a Sul


    Seguimos para sul na auto-estrada que acompanha a orla marítima. Na berma da estrada, cartazes do Hezbollah rivalizam com anúncios de grandes empreendimentos turísticos. A estrada é surpreendentemente boa, o que tende a aliciar a velocidades pouco indicadas para o estilo imprevisível de condução libanesa.
    Após breve incursão pelo interior montanhoso para visitar o belo palácio druze de Beitedinne (literalmente, a ‘casa do destino’ ou a ‘casa de Deen), seguimos rumo a Saida (Sidon). A cidade reputada como o local de nascença do omnipresente ex-Primeiro Ministro Rafik Hariri, abriga hoje um dos maiores e mais violentos campos de refugiados palestinianos do Líbano, Ain el Helwe. O nosso anfitrião, Deen, diz que ainda na semana passada, facções opositoras dentro do campo arremessaram RPGs (rocket-propelled-granades) entre si. Nao precisaríamos de tanta informação para sentir o clima de tensão que se vive em Saida. Para alem de inúmeros postos de controlo na estrada - onde somos forcados a abrandar e a retirar os óculos escuros para mostrar a cara aos soldados libaneses - existe também um forte contingente militar na cidade. O campo propriamente dito assemelha-se a um gueto, cercado por altos muros de cimento e  arame farpado, isolado do resto do mundo na sua própria miséria e violência. 

    Continuamos para sul em direccao a cidade portuaria de Tir na mesma estrada, atraves de plantacoes de bananeiras., que mais tarde, descobririamos camuflaram militantes do Hezbollah durante a ultima guerra com Israel (segundo o Deen, os militantes escondiam-se entre as palmeiras para lancar misseis contra Israel e aqueciam-nas para nao serem detectados pelos radares de calor dos avioes israelitas). A medida que avancamos para Sul, a evidencia de dois conflictos torna-se cada vez mais clara: os Palestinianos Sunnis dentro dos campos e os Libaneses Shiitas fora deles. Os posters de Hassan Nasrallah (lider do Hezbollah) e de outros lideres Shiitas como o ja falecido Ayatollah Khomeyni, sucedem-se, assim como os postos de controlo militares e os tanques da UNIFIL (Forca Interina das Nacoes no Libano), da qual integra um contigente portugues.

    Tir, no entanto, revela-se uma pituresca, pequena cidade de pescadores. Somos os unicos no restaurante Le Petit Phoenician (a estrela da restauracao local), debrucado sobre o pequeno porto de pedra amarela, e o dono, um tipico habitante das margens do mediterraneo, serve-nos um manjar de saladas, humous e dourada. Deleitando da beleza e tranquilidade em nosso redor, o cliche e enfim inevitavel: a guerra nao assenta bem a este idilico local.  


    terça-feira, fevereiro 23, 2010

    Dia 1 - Beirute




    Beirute é uma cidade urgente. 
    A emergência enceta a manha ao timbre de persistentes buzinadas e pesadas marteladas. Pouco em breve, a sucessão de instrumentos cria empolgante cacofonia em anúncio de gente e vida. Dir-se-ia que tal urgência pertence aos grandes centros cosmopolitas do século XXI, como Londres, Nova Iorque, Tóquio ou o Rio. Porém, nesta cidade de um milhão de habitantes, alcovitada numa peninsula prazenteira do Mediterrâneo Oriental, a emergência suspeita-se.
    La fora, a cidade entra em plena ebulição. Os guindaste disputam os céus numa fúria edificadora, os carros de alta cilindrada desafiam-se entre semáforos e nas principais vias comerciais, muçulmanos singelas arrastam o olhar nas católicas destapadas. Sao como veias tensas estas ruas, povoadas por uma massa frenética de gente que entre e sai de lojas de marca, que negoceia múltiplos sacos de compras entre as mãos, que berra ao telemovel para se sobrepor aos rádios dos carros, que rema contra as filas de carros em cima de uma lambreta instável, que pára o transito para cumprimentar um amigo dentro de uma loja. Nas pequenas coisas como nas maiores, Beirute denuncia a sua vontade de viver aqui e agora.
    Ao almoço, o nosso anfitrião, Deen, ajuda-nos a compreender a alma da cidade. ‘In Beirut, everything can change from one moment to the next.’ Por outras palavras, a urgência de viver em Beirute é memória fresca de um terrível passado, recordada pela manutenção de edifícios esventrados pela guerra, mas sobretudo temor de um futuro sombrio. Nesta cidade, a emergência não é um estilo de vida; é um contigente de circunstancias extraordinárias. E, segundo o Deen, esse medo tem fundamento real nos rumores que correm a cidade sobre uma próxima batalha final entre Israel e o Hezbollah.
    Por tudo isto e porventura por muito mais que se esconde para lá dos vidros fumados dos jipes que atravessam as avenidas, Beirute e uma cidade com a urgência de quem um encontro marcado com o destino. Todavia, e principalmente no luxo explosivo da sua nova baixa urbana, encontra-se também uma heroína trágica, eternamente entregue às suas próprias ambições. Assim se descobre que, tanto quanto perseguida pelo seu destino, Beirute persegue também a glória. Desavergonhadamente e a todo o custo. Mesmo que dure apenas um dia.

    segunda-feira, fevereiro 22, 2010

    Uma viagem ao umbigo do mundo





    Parem a música, encandeiem os focos, aspirem o ar – eis, finalmente chegado o momento da anunciada revelação. Senhoras e senhores, este blog iniciará hoje uma viajem de mochila às costas pelos países do Levante. Como poderão apreciar no mapa acima transcrito (podem clicar nele para melhor examinar o trajecto), começarei este périplo pelo Líbano e seguirei depois rumo à Síria, Jordânia, Israel, com uma pequena incursão pelos Territórios Ocupados da Cisjordânia, vulgo Palestina, vulgo Margem Ocidental (West Bank, em inglês). Para dizer a verdade, não sei qual terminologia aplicar a este pedaço de terra tão conturbado quanto desejado. Serão precisamente questões como esta, mas também o sucesso da experiência multinacional do Líbano, a descoberta dos intactos cheiros e sabores da Síria, o reencontro com a modernidade na Jordânia do século XXI, e o contacto com israelitas e palestinos numa altura de impasse para o processo de paz, que procurarei responder.

    Auspiciosamente, o início desta aventura levantina ficou desde já marcado pela greve dos pilotos da Lufthansa, reflexo do período económico em que vivemos, que levou à antecipação da partida para o domingo, dia 21 de Fevereiro de 2010. Assim, a partir desta segunda-feira até domingo dia 28 de Março, proponho-me a escrever um diário de viagem com cerca de 300 palavras, feito de pequenos trechos, conversas e descrições daquilo que irei ver, cheirar e ouvir no Levante. Como estou certo que compreenderam, as parcas condições deste viajante, assim como a inospidade de alguns locais que pretendo visitar, condicionarão inevitáveis quebras de contacto e eventuais dificuldades de periodicidade. No entanto, comprometo-me aqui a publicar os textos relativos a todos os dias de viagem, mesmo que com três ou quatro dias de atraso. Por último, a parte mais importante para mim, mas também aquela que é mais intíma: nesta aventura terei o prazer, mas sobretudo a cumplícidade da companhia da minha namorada. 

    Espero que esta proposta vos interesse e que vos posso encontrar aqui amanha. Ate la,

    Ma salema,

    Indigo

    sábado, fevereiro 20, 2010

    O assassínio do líder militar do Hamas




    Os serviços secretos do Dubai divulgaram hoje este documentário com imagens das câmaras de segurança do episódio que o The New York Times já proclama 'the best spy thriller of the year'. Mahmoud al-Mabhoud, líder de operações militares do Hamas, foi assassinado no passado dia 20 de Janeiro no quarto 230 do Hotel Al Bustan Rotana, no Dubai. Dos assassinos, muito se especula, mas pouco se sabe. Vale a pena ver o vídeo (ou, se não tiverem tempo para assistir a tudo, vejam o que se passa a partir do minuto 20) para perceber e admirar o funcionamento de uma intrépida equipa de espiões no mundo real do século XXI. Mais informação e discussão sobre as repercussões do caso para o Médio Oriente, aqui.

    terça-feira, fevereiro 09, 2010

    A vitória do hutspa




    No sábado passado, o Expresso publicou um interessante e oportuno artigo do seu correspondente no Médio Oriente, Henrique Cymerman, sobre o sucesso de Israel na área das altas tecnologias. Numa altura em que o 'choque tecnológico' de José Sócrates se encaminha para um final insosso, e os portugueses perguntam o que poderá ser feito para sacudir, de uma vez por todas, a pobreza e atraso do país, vale a pena ler sobre este país, que é muito menor do que nosso, embrenhado em problemas existenciais incomensurávelmente mais graves do que os nossos e que, ao longo das suas seis décadas de existência, teve de lutar contra dificeis condições geográficas (falta de água, aridez dos solos, etc), sociais (sucessivas vagas de imigração) e políticas (instabilidade, radicalização de posições ideológicas, intervenções externas, etc) e que, apesar de tudo isto, está hoje na vanguarda de um dos sectores mais dinâmicos da economia munidal. É claro, não podemos deixar de notar que Cymerman 'se esquece' de referir que o milagre económico israelita beneficia do apoio e da relação estreita com altas patentes das comunidades ciêntíficas e económicas nos Estados Unidos da América, muitas das quais vêem a colocação de delegrações, institutos e laboratórios em Israel como uma forma de contribuição para o projecto sionista. Porém, a verdade é que muitos outros países também beneficiaram desse sustento e não foram capazes de retirar dele os proveitos que Israel consegue e conseguirá - portanto, há aqui uma (ou várias) lições a aprender e que dizem respeito não só a um povo, nem aos fiéis de determinada religião, mas sim a modelos de desenvolvimento universais. E assim, passo a palavra ao Senhor Cymerman:

    "O Presidente de Israel, Shimon Peres, costuma dizer que o maior contributo hebreu para o mundo é a insatisfação. Há uma palavra hebraica – hutspa – que descreve este espírito: algo entre o atrevimento e a insolência.
    ‘Um judeu nunca pode estar insatisfeito.’ Peres troça daqueles que, em Israel lamentam que Moisés não tenha conduzido as tribos para uma zona com petróleo. ‘O petróleo corrompe e contamina.’ A falta de recursos naturais é um dos factores-chave do desenvolvimento da alta tecnologia em Israel, um país com apenas 61 anos e um quinta da área de Portugal.
    Os investigadores norte-americanos Dan Senor e Saul Singer publicaram recentemente um livro, ‘Start-Up Nation’, em que sublinham que apesar das guerras, ou talvez por causa delas, o high tech israelita continua florescente. Um país em guerra semipermanente – com menos população que o estado de Nova Jérsia – tem mais empresas de alta tecnologia inscritas no Nasdaq do que a Europa, Japão, Coreia do Sul, Índia e China.
    Em 2008 os investimentos estrangeiros em capital de risco em Israel foram 2,5 maiores que os dos EUA, 30 vezes os da Europa e 80 vezes os da China. Num ano de crise mundial, estes investimentos representaram 2000 milhões de dólares (€1399 milhões), mais do que na Grã-Bretanha ou do que na França e Alemanha juntas. Segundo Senor e Singer, isso deve-se ao facto de grandes empresas como a Google, Intel, Motorola, Ebay ou Cisco considerarem as suas representações em Israel como os laboratórios mais avançados, ‘onde se resolvem os problemas tecnológicos considerados sem solução no estado-maior das empresas.’
    O director da empresa israelita de alta tecnologia Radcom, Adar Eyal, acredita que isto tem muito que ver com a falta de hierarquia reinante na sociedade israelita. ‘Quando levo estrangeiros a bases militares, ficam atónitos ao ver soldados e generais tratando-se por tu e servindo-se café, sem distinção de patentes. Em muitos aspectos continuamos a ser uma espécie de kibbutz, para o bom e para o mau, e isso também se nota nas start-ups.”

    (…)

    “O visitante norte-americano reconheceu que um jovem de 25 anos em Israel é ‘muito mais maduro e experiente’ que noutros lugares do mundo, já que cumpriu um serviço militar de pelo menos três anos, durante o qual teve de tomar decisões difíceis e dominar temas muito avançados de informática.
    A impaciência israelita, salpicada, por vezes, por rudeza e a eternização do conflito com os palestinianos, podem ameaçar o milagre económico israelita. Cada vez que se vive alguma segurança, a economia floresce. Os investigadores dos EUA resumem: ‘Israel não é só um país, é também um estado de espírito. É a vitória do hutspa.’”