A Gaivota Farragulha

    terça-feira, abril 06, 2010

    Dia 25 - Yad Vashem



    (Yad Vashem ou o Museu do Holocausto em Jerusalém. IndigoeoMar)


    A história deveria começar aqui.

    O nome veio de um versículo do Antigo Testamento: "E a eles darei a minha casa e dentro dos meus muros um memorial e um nome (Yad Vashem) que não será arrancado." (Isaías 56:5.)” O propósito veio da memória recente: Yad Vasem é o museu e memorial para “Recordação dos Mártires e Heróis do Holocausto.” O espírito preenche a lacuna entre o caos e a realidade: a perseguição do povo judeu.

    À entrada (gratuita, assim como o shuttle que nos leva através de um bosque desde da estrada principal até às portas do memorial), uma senhora pergunta-nos de onde somos. Surpresa! Somos do país de um grande homem, um homem que arriscou a vida para salvar milhares de judeus, um homem chamado Aristides de Sousa Mendes. Diz-nos para acorrermos ao memorial das crianças vítimas do Holocausto, e procurar no jardim dos ‘Justos entre as Nações’, do lado direito uma árvore com o seu nome – é a apropriada homenagem que o povo judeu lhe concede. Mais informação no site do memorial, aqui.
    É também, felizmente, a única referência ao nosso país no museu inteiro. Pois, o Yad Vashem não se confina às brutalidades cometidas pelos Nazis na primeira metade do século vinte; ao longo de onze primorosas salas, o Yad Vashem narra a história de segregação e violentação do povo do judeu e da qual quase ninguém, nem mesmo os EUA, sai incólume (no capítulo da Inquisição, fala-se da Espanha e não de Portugal). O museu dedica particular atenção aos antecedentes europeus do nazismo, nomeadamente o aumento do nacionalismo e episódios como o affair Dreyfus, e estabelece uma lógica e sensata ligação entre o geral e o particular – afinal, o Nazismo não foi uma excepção. Entre outras curiosidades do museu, existe um filme sobre profissões tipicamente desempenhadas por judeus antes do nazismo e a recriação da sala de estar de uma família judia abastada.

    Mais do que impressionar pelas atrocidades, as salas dedicadas aos Holocausto procuram abranger a variedade de experiências judias durante este período negra da história. Fala-se dos campos de extermínio e das câmaras de gás, mas também dos campos de trabalho, dos judeus que fugiram para outros países, dos que viveram ocultos sobre ocupação alemã, dos que foram forçados a longas caminhadas no final da guerra (marchas da morte), dos que se revoltaram, dos viveram nos guetos, dos idosos e dos doentes, dos que foram salvos por oficiais alemães, dos que morreram e sobreviveram, entre muitas outras realidades. No fundo, fica-se com a sensação de que o Holocausto não foi o episódio monolítico como é frequentemente retratado pela imprensa: o povo judeu estava sob ameaça iminente em todo e qualquer lugar.

    Perceber isto é perceber porque os judeus querem um Estado só para eles. É perceber também porque os Judeus atribuem um valor tão alto à segurança dos judeus, enquanto indivíduos e enquanto povo. É começar a perceber a história do conflito israelo-árabe. Ainda bem porque no dia seguinte partiríamos para a Palestina. Estávamos preparados.

    quinta-feira, abril 01, 2010

    Dia 24 - Valsa com Bashir



    (Soldados em Akko, no norte de Israel. IndigoeoMar) 


    ‘Which place did you like the most, so far?’ Noutra situação, a pergunta marcaria o inicio de um pacífico serão. Porém aqui, sentado da sala de estar de três militares israelitas que conhecemos dois dias antes através do site couchsurfing.com, a pergunta soa-me a convite para passear num campo de minas*. Optamos pela sinceridade: ‘Balbeek, in Lebanon.’ Pedem-nos para explicar. ‘Oh, it’s amazing! The size of the temples, the state of conservation and the atmosphere, it’s really special. It’s in a valley, surrounded by huge mountains and the peaks are still covered in snow. Shame we couldn’t stay for longer because it became dark and we had to leave.’

    ‘I was in Balbeek once,’ diz o Doron, o nosso contacto do couchsurfing. ‘It was dark too and there was a lot of fireworks. And I was shitting myself.’ Afinal, a conversa sempre era um campo de minas.

    A partir deste ponto, o nosso interlocutor transforma-se: desapareceu o jovem vibrante, criado num kibbutz no norte do país, voraz defensor dos ideais comunistas e surgiu um adulto ansioso, tremulo de mãos e de cara, e possuidor de olhar frio e lancinante. Diz-nos que o exército israelita decide, com base em exames físicos e psicologias, em que divisão cada jovem do sexo masculino cumpre os três anos do serviço militar obrigatório. No caso dele, coube-lhe uma divisão de elite. ‘I’m a good shooter. What can I do?’ Diz-nos também que tinha 18 anos e fez o que lhe pediram porque tinha medo – não pretende falar sobre o que fez (eu sei, eu perguntei). Diz-nos que duas vezes por ano é chamado para treinar no exército, para se manter em forma, e que, em caso de guerra, como em 2006 com o Líbano, deve apresentar-se ao serviço. Mais tarde, e já em forma de desabafo, diz-nos: ‘So much fighting for land! They want the land, they can take it!’ Pensei com os meus botões: passa-se qualquer coisa de errado.

    No dia seguinte, estávamos de novo reunidos na sala - eu, a minha namorada, o Leor e um amigo deste, o Aviv. Mal a minha namorada se retirou para o quarto, o Aviv disparou na minha direcção: ‘What do they say about Israel in Lebanon and Syria? What do they think about us?’ Era a pergunta que eu mais temia. Porém, tal como na noite anterior, quem começou a tremer foi o meu interlocutor. Da minha resposta pouco quis ouvir. Olhando com os olhos mais sérios com que jamais me olharam, e para os quais não encontro outra associação senão os da testemunha de acontecimentos tremendos, disse-me qe não estava a favor daquilo que os israelitas faziam com os povos árabes. Mas logo depois disse que considerava estranho que os palestinianos na Jordânia não gostassem de Israel (contei-lhe a conversa com um motorista), tendo em conta os acontecimentos de Setembro de 1970 – quando o Rei Hussein da Jordânia esmagou brutalmente a resistência palestiniana e obrigou-os a partir para o Líbano. Pediu-me, várias vezes, para o confirmar na Internet, até que lhe prometi que o veria amanhã (aqui está). A sua obstinação lembrou-me a indeferença dos loucos perante o que os outros pensam e dizem – ele projectava em mim próprio um julgamento moral sobre aquilo que ele e o país dele fazem (mesmo depois de lhe ter dito que tinha partido nesta viagem de mente aberta sobre o conflito e por isso tinha visitado estes países).

    Lembrou-me também o filme israelita ‘Valsa com Bashir’, nomeado para o Óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira no ano passado (se ainda não viram, recomendo). Curiosamente, quando estávamos no Líbano, o filme veio à baila. Os meus amigos que lá vivem disseram que não apreciaram o filme por o achar condescendente com os soldados israelitas. Discordei na altura, e depois destas duas últimas noites, discordo com ainda mais convicção. Os soldados israelitas podem ser a mão que segura a pistola mas não são o cérebro que decide disparar. É necessário e humano reconhecer que também para eles, tão novos e tão manobrados, a guerra é uma violência. Negá-lo é outra forma de extremismo.




    * Acresce a este aspecto, o facto de os Israelitas não poderem viajar para a Síria e para o Líbano, sendo por isso compreensível a sua curiosidade por estes países.

    terça-feira, março 30, 2010

    Dia 23 - Briga de Familia














    (Separados à nascença? À esquerda, mercado em Damasco; à direita, mercado em Jerusalém. IndigoeoMar)

    Reza a sapiência popular que quanto maior o grau de afinidade, mais feia é a briga. Assim acontece entre famílias e assim acontece entre árabes e judeus.

    De passeio pelas ruas do casco antigo de Jerusalém fica bem patente a convivência milenar entre estes dois povos. O parentesco revela-se primeiro na linguagem – na semelhança lexical entre as duas línguas e no facto de ambas lerem no sentido da direita para a esquerda. Nos locais santos, os judeus, tal como os árabes, separam homens e mulheres - a quem exigem que cubram a cabeça (e os homens devem usar a kippa, uma espécie de pequena taça de pano colocada ao contrário na nuca).

    No muro das lamentações, os judeus inclinam-se insistentemente contra a parede; um movimento que ecoa os rituais dos muçulmanos nas mesquitas. Da mesma forma, no túmulo de David, a devoção das crianças perante uma caixa coberta por um grosso pano verde, por sua vez encapotado por um plástico de protecção, remontam-nos à devoção dos supostos restos mortais de São João Baptista (também adorado por estes últimos) na Grande Mesquita em Damasco.

    As semelhanças entre judeus e árabes não se limitam a aspectos linguísticos e religiosos. Elas atravessam todo o panorama social e cultural, desde a alimentação (a prevalência do húmus, dos falafels, do pão Pitta, entre outros) ao impaciente estilo de condução e à centralidade dos mercados de rua (souks, em ambos países) na vida comercial. Afinal de contas, judeus e árabes são como dois irmãos desavindos, sendo que os cristãos desempenham o confuso papel de irmão do meio.

    sexta-feira, março 26, 2010

    Dia 22 - O dia mais longo

    Pela quarta vez consecutiva, acordamos antes das seis horas da matina. Tomamos o pequeno-almoco numa rocha com vista para os tres desertos (rosa, branco e amarelo) e partimos de camelo, agora sim, para a aldeia de Wadi Rum. Devo dizer que a experiencia ficou aquem das nossas expectativas e, sobre ela, nao restaria memoria nao fosse por um caricato incidente. Estamos a meio do caminho quando uma companheira francesa se comecou a queixar que a sela escorregava pela traseira do camelo. Perante a iminencia do desastre, o guia, um sudanes chamado Mohammed, saltou da sua arisca camela e acorreu ao camelo da francesa, chegando mesmo a tempo de a amparar na queda. Porem, assustada com esta agitacao, a camela do sudanes desatou a galopar pelo deserto, levando atras os outros camelos e nos em cima deles. Uma cena! Felizmente, nao foi muito longe e em poucos minutos o nosso Mohammed conseguiu por tudo em ordem e de volta ao caminho.

    Da aldeia de Wadi Rum seguimos para Aqaba num taxi partilhado com um casal suis generis: ele, suico de origem argelina, vive agora em Beirute; ela, turca, mas de educacao suica, trabalha no Suica. Em Aqaba estivemos apenas o tempo necessario para cumprir tres urgencias: fazer uma muito ansiada visita a casa de banho (as do deserto desafiavam definicoes); almocar; cortar o cabelo e fazer a barba (o objectivo era parecer 'menos arabe'). Findas estas tarefas e sem tempo a perder, enfiamos as mochilas na mala de um taxi e gritamos ao motorista: 'To the Israeli border!' Devia ser por volta da uma da tarde e fazia um calor de desfalecer. Foi pelo menos essa a sensacao que tivemos enquanto atravessamos a 'no man's land' entre a Jordania e Israel.

    Do outro lado, fomos recebidos por uma rapariga de uniforme que verificou os nossos passaportes e nos enviou para uma especie de pre-fabricado imaculadamente branco. Entrar aqui foi como que entrar num laboratorio da NASA instalado no meio do deserto. As portas deslizantes automaticas abriram-se e revelaram uma sala climatizada, adornado com uma fotobiografia de Yitzhak Rabin (Primeiro Ministro Israelita assassina em 1995 por um radical judeu oposto ao processo de paz). A guarda fronteirica era inteiramente constituida por raparigas e por momentos julguei-me perante um exercito de belas amazonas. Depositamos as malas na maquina de raio-x e avancamos para um detector de metais. Aqui, enquanto esperava para passar, uma das amazonas pegou no meu telemovel e analisou-o cuidadosamente como se procurasse algo.  As mochilas passaram sem problemas no raio-x mas a maquina fotografica, os livros e os papeis (nao faco minima ideia porque) regressaram tres vezes a maquina. 

    Passamos ao seguinte nivel de seguranca: controlo de passaportes. Primeiro, entrevistaram os dois: perguntaram-nos pela primeira vez em que ano tinhamos estado no Libano e na Siria, o que tinhamos feito la e o que vinhamos fazer a Israel.  Depois disto, mandaram-nos sentar num banquinho e levaram os nossos passaportes para dentro. Pouco depois, chamaram-me apenas a mim e fui de novo entrevistado. Perguntaram em que ano tinha estado no Libano e na Siria, o que tinha feito la e o que vinha fazer a Israel. Perguntaram-me tambem em que ano conheci a minha namorada, se conhecia alguem no Libano ou na Siria e pediram-me para escrever num papel o meu nome completo, o primeiro nome do meu pai, o primeiro nome do meu avo paterno, o nome do meu amigo no Libano, o meu numero de telefone de casa, o meu numero de telemovel e o meu e-mail. Mandaram-me sentar de novo. Cinco minutos depois, entregavam o passaporte a minha namorada.

    A partir dai, nunca mais ouvimos nada sobre o meu passaporte. Passaram varios grupos de australianos, americanos e alemaes e nada sobre o meu passaporte. Passou um grupo de pessoas que acampou connosco no deserto e que naquela manha fez um tour em Wadi Rum e nada sobre o meu passaporte. Finalmente, cerca de duas horas depois (e sem que mais ninguem tivesse ficado a espera, o que quer dizer que estiveram completamente ocupados com os meus dados), entregaram-me o passaporte: 'You can go now.' Pelo menos, nao me colocaram as duas perguntas que mais temia: se tinha estado em mais algum pais arabe, ao que teria de responder que sim e que tinha passado quase quatro meses no Iemen; e o que la tinha estado a fazer, ao que teria de responder que tinha estado a fazer um estagio na ONU e a aprender arabe (duas ocupacoes que nao caiem bem a Mossad). Tambem nao me pediram para ver as fotografias da maquina fotografica, onde teriam reparado que eu tinha acabado de mudar o meu visual para entrar em Israel. Tambem nao abriram as nossas mochilas e descobriram o iman do Hassan Nasrallah (lider do Hezbollah) que comprei no Libano como souvenir da viagem. Enfim, bem vistas as coisas, a travessia desta fronteira nem correu mal.

    Chegamos a Eilat (do outro lado da baia de Aqaba) mesmo a tempo de saber que tinhamos conseguido um local para ficar em Jerusalem (um couch surfing no centro moderno da cidade) e apanhar o autocarro para la. Seguiram-se cinco horas ao longo do deserto do Negev (que nao conseguimos ver porque entretanto anoiteceu) mais uma viagem de taxi ate ao centro de Jerusalem. Por fim, encontramos o nosso anfitriao e aterramos estafados, imundos e algo confusos na cama. Tinhamos chegado a Jerusalem.  


    quinta-feira, março 25, 2010

    Dia 21 - Wadi Rum


    Nova madrugada, nova pesarosa peregrinacao. Desta feita, rumamos a sul, em direccao a Wadi Rum, o deserto predilecto de T.E. Lawrence -  e, sobre desertos, ele percebia uma coisa ou outra.

    Devo confessar portanto que esta era, para mim, uma das paragens mais antecipadas da viagem. O acaso ditou, porem, que este dia fosse tambem o primeiro, e ate agora o unico dia, em que me senti indisposto - provavelmente, fruto de uma insolacao apanhada em Petra no dia anterior. Na pratica, este contratempo traduziu-se na subsitituicao do passeio de camelo (no estilo evocativo do El-Awrence) por um safari de jipe pelo deserto. Esta opcao teve, pelo menos, duas significativas vantangens: a primeira a nivel de custo, e a segunda a nivel do que podemos ver num unico dia.

    Como descrever Wadi Rum? Wadi Rum nao e um deserto no sentido classico da palavra. Aqui, a vastidao dos horizontes da lugar a naturais boulevards flaqueados por massicos rochosos entre o beige e o castanho profundo - dependendo da posicao do sol. Cruzando estas amplas avenidas, hoje como no tempo de Lawrencem, um sente-se constantemente observado como se desfilando perante solenes alas de gigantes dignatarios. Trata-se afinal de um Wadi - desfiladeiro formado por um rio extincto - a caracteristica dominante desta regiao (Amman, Petra e Jerusalem cresceram todas em torno de um ou mais wadis).

    A singularidade de Wadi Rum encontra-se na areia que polvilha esses antigos leitos: inicialmente rosa, ela deriva por vezes ate ao branco e o amarelo. Esta harmoniosa paleta em conjunto, e contra a rocha escura, forma um inesquecivel impacto visual que apenas podera sugerir uma obra de inspiracao divina - ou nao estivemos tao perto da terra santa.

    Por esse motivo, ou por qualquer, ao fim da tarde passou-me a indisposicao. Deitamos-nos sobre uma rocha quente, junto do acampamento onde passamos a noite, e despedimos-nos do dia no ritual silencioso do deserto. Pouco depois, o motorista do jipe ligava a bateria do carro a um radio (dai, as constantes dificuldades em ligar o motor ao longo do dia..) e encetava uma noite de saltos e rodopios em volta da fogueira. Mas era demais para nos que so queriamos apreciar os tons de Wadi Rum. Fui para cama pensar (era impossivel dormir) que os Beduinos nao tinham mudado assim tanto desde os tempos do Lawrence. Para o bem e para o mal!

    quarta-feira, março 24, 2010

    Dia 20 - Petra

    Dizer que Petra e um local turistico sera um eufemismo. Petra e hiper-turistico ou nao fosse, como os locais gostam de lembrar, uma das sete maravilhas do mundo ('elected in Portugal!'). Aqui, pela primeira vez desde o inicio desta viagem, deparamos-nos com uma fauna humana familiar: interminaveis grupos turisticos de senhores e senhoras de chapeu na cabeca, meias de desporto, sapatilhas e calcoes. Por vezes, somos tentados a perguntar se estamos num cruzeiro americano, russo ou italiano ou a passear pelo deserto - ambas as hipoteses sao plausiveis. 

    De modo a evitar estes enchentes, levantamos-nos antes das 6 da manha. Conseguimos percorrer o Siq (o caminho turtuoso entre as rochas, mais conhecido pela imagem do Indiano Jones em cima de um burro ou cavalo, ja nao me lembro) em relativa paz e ser uns dos primeiros a chegar ao Tesouro (o templo esculpido na rocha). Valeu a pena ao sacrificio.

    No entanto, a medida que continuamos a explorar as ruinas sinto-me cada vez mais inclinado a pensar porque razao Petra atrai tanta gente. Sim, os templos na rochas sao impressionantes, mas na ilha de Elefanta, na baia de Bombaim (infelizmente, bombardeada pelos Portugueses), existem os templos tem mais para ver. Sim, as cores das pedras sao deslumbrantes, mas o nosso amigo alemao diz que ja viu (tambem na India) um massico rochoso do mesmo genero maior e menos explorado. Sim, as ruinas dos Nabateus (que habitavam a cidade) sao interessantes, mas carecem a explicacao de um especialista, sem o qual fazem uma palida comparacao com as ruinas de Balbeek, Palmyra ou Bosra. Em suma, o que e que Petra tem?

    Podera dizer que e a beleza natural do local. Passamos o resto da tarde a subir as montanhas, por escarpas apertas, a descobrir novos tumulos e novas vistas. Fora do percurso turistico, Petra e realmente fascinante. Podera tambem dizer-se que Petra combina estas varias facetas: sitio arqueologica, beleza natural, interesse historico. Mas podera tambem dizer-se, sobretudo em vista da quantidade de turistas americanos, que Petra fara parte do pacote de paz entre a Jordania, Israel e os EUA. Imagino o Rei Hussein a negociar treguas com os Americanos em troca de tornar este um destino imperdivel do turismo mundial - num pais ocupado pelo deserto, Petra e o seu turismo fazem toda a diferenca.

    terça-feira, março 23, 2010

    Dia 19 - Petra no horizonte

    Em primeiro lugar, gostaria de apresentar as minhas sinceras desculpas por este interregno. Nas ultimas semanas, a frentenica sucessao dos eventos, assim como o meu proprio cansaco e a falta de acesso a computadores, impediram a assiduidade do relato. Espero, no entanto, poder compensa-los com a boa noticia que recebi nas ultimas semanas: fui aceite no doutoramento da George Washington University nos EUA. Portanto, ha um futuro a minha espera quando regressar. Parecendo que nao, esta noticia transformou muitas coisas esta viagem (a comecar pelo o sorriso que agora trago no rosto). Dito isto, e sem mais demoras, retomo entao o relato desta aventura no local onde vos deixei: em Amman.

    No dia em que pretendiamos chegar e visitar Petra, os contratempos comecaram no momento em que saimos do Bdeiwi Hostel. O primeiro taxista levou-nos para um estacao de onde nao partiam autocarros para Petra. O segundo teve mais artimanha. Mal entramos no taxi, inicou uma lenga-lenga sobre a sua integridade de catolico em contraste com a desonestidade dos muculmanos (ou seja, todos os outros taxistas). Segundo ele, estes muculmanos nao tinham Deus o suficiente. Foi uma longa viagem a volta de Amman que ficou marcada por uma ameaca de abandono do taxi e sucessivos pedidos, directos e frontais, para que se calasse e nos deixasse pensar o que quissessemos sobre a sinceridade de muculmanos e cristaos. No final, pagamos menos do que marcava no taximetro tal era a nossa revolta com o homem. 

    La fomos nos, entre suor e nervos (e ainda nem eram dez da manha), ate ao autocarro que, certo como nos tinham dito, seguia para Petra. Porem, a dita maquina nao arrancava enquanto nao estivesse cheio, pelo que ficamos ali um bom bocado a espera que os passageiros tomassem os lugares. Sorte nossa que logo a chegada fizemos um amigo alemao, cumplice desconhecido de viagens pelo mundo, e que nos ajudou a passar o tempo. Finalmente, partimos - de janelas abertas para furar o ar fetido.

    Porem, nem uma hora depois, estavamos a encostar na berma da estrada. Hora do chi-chi, nao queriamos crer. Sendo sexta-feira, tratava-se da hora da reza, em que quase todos os homens que seguiam viagem connosco acorreram a uma mesquita ali perto. Ficamos entao ali, nos os tres mais umas quantas mulheres a fumar cigarros dentro do autocarro, a curir o solzinho do deserto. Quando nos fizemos pela terceira vez a estrada, ja sabiamos que Petra nao seria para aquele dia.

    No caminho, tivemos ainda oportunidade de ver os helicopetros onde seguiam o Vice-Presidente dos EUA, Joe Biden, e a sua mulher, que tinham nesse dia visitado Petra (curiosamente, o recinto esteve encerrado nesse dia e, por isso, mesmo que tivessemos chegado a tempo, nao poderiamos ter visitado). Falta dizer que nessa altura ja marcava as noticias o fracasso das negociacoes entre os EUA e Israel sobre a expansao dos colonatos e, o resto da viagem, prometia a esse nivel.

    Chegamos a Petra pouco antes do por do sol. Felizmente, conseguimos quarto num sitio muito simpatico (o recepcionista quase que nos impunha um cha com ele sempre que entravamos ou saiamos), por um preco que deixou os nosso amigos invejosos (entretanto, conhecemos um belga e uma francesa).

    Preparamos-nos para o dia que viria.

    quarta-feira, março 17, 2010

    Dia 18 - Confronto

    Fomos visitar os chamados 'Castelos do Deserto', a este de Amman, na estrada em direccao ao Iraque e a Arabia Saudita. Houve tres motivos que me despertaram interesses nestes castelos. O primeiro foi o facto de estarem ainda fora do percurso turistico da Jordania. Segundo, a oportunidade de apreciar construcoes arabes autenticas e originais, algo novo nesta viagem. Com efeito, numa regiao maioritariamente habitada por nomadas do deserto, a construcao de estruturas permanentes tende a ser uma raridade. Para alem do mais, a maior parte dos edificios da antiguidade que visitamos no Libano e na Siria pertencem, em natureza e disposicao, a outros povos e civilizacoes (egipcios, persas, gregos, romanos, bizantinos, etc). Por ultimo, o motivo da minha curiosidade por estes castelos deve-se a sua contemporaneadade com a invasao moura de Portugal. Por outras palavras, nestes castelos viveram os senhores que planearam e governaram quinhentos anos de historia arabe portuguesa. Curiosamente, num dos castelos encontramos uma inscricao datada de Novembro de 710 - ou seja, alguns meses antes da invasao comandada por Tarik ibn Ziyad.

    Porem, com tanto tempo de viagem atraves do meu querido deserto (por incrivel que pareca, o deserto ou mar sao os meus espacos predilectos), os meus pensamentos tiveram horizonte para regressar ate a imagem do dia anterior nas margens do rio Jordao. Pensava eu sobre o conflito entre Israel e os Arabes, que a medida que nos aproximamos do olho do furacao se torna mais visivel. Numa tentativa de sistematizar as ideias sobre o problema e de estabelecer um ponto de partida, estabeleci entao uma dicotomia sobre o assunto. Existem, na minha opiniao, duas formas de, sensatamente, pensar o conflito Israelo-arabe. 

    A primeira, que gostaria de chamar historica, funda-se na ideia de que as ocupacoes, as conquistas e os conflitos fazem parte da historia. Neste sentido, o conflito israelo-arabe prova a falacia da teoria de Fukuyama sobre o fim da historia - a historia nao acaba com o fim da Guerra Fria porque pertence a natureza dos homens cobicar o espaco, o poder ou os recursos de outros. A historia faz-se dessa cobica. O facto de Israel ter conquistado e ocupado a Palestina na segunda metade do seculo XX faz parte da historia da humanidade. O facto de os zionistas conseguirem esse territorio deve-se a sua superioridade, ao seu esforco e sacrificio e tambem isto e um facto da historia. Talvez um dia, voltarao a perder este territorio (pela terceira vez) e tambem ai sera um facto da historia. Mas enquanto a Palestina pertencer ao Israelitas temos que o aceitar como uma realidade porque eles a criaram. Por exemplo, os colonos britanicos expulsaram e ocuparam os territorios dos indios e dos aborigines, respectivamente, na America do Norte e na Australia. Embora esses povos tenham conseguido reenvidicar alguns direitos em tempos recentes, a colonizacao desses territorios por alienigenas e hoje aceite como um facto historico. Do mesmo modo, a expulsao dos arabes da Palestina e a ocupacao deste por israelitas, por muito tragica e brutal que foi, merece ser aceite como parte da historia. Afinal, que paises nao resultaram de episodios como este?

    Por outro lado, existe uma perspectiva que se prende com o contexto especifico da criacao de Israel que gostaria de chamar perspectiva humanista. O Estado de Israel, tal como existe hoje, nao e fruto de uma epoca em que a violencia e a morte eram aceites como meios legitimos para chegar a um fim, como era por exemplo no tempo de Alexandre ou na Idade Media. O Estado de Israel foi criado numa epoca em que existiam ja os 'Direitos Humanos' e o 'Direito Internacional'. Porem, desde da sua fundacao, o Estado de Israel tem agido em violacao de ambos. A evolucao humana, para a qual o povo judeu muito tem contribuido, nao nos permite aceitar a expulsao sistematica de individuos baseados na sua identidade etnica e religiosa (muculmanos e cristaos) da palestina, nao nos permite aceitar as intervencoes unilaterais e desastrosas de Israel nos paises vizinhos (nomeadamente, no Libano) e nao nos permite aceitar as actuais condicoes de vida nos territorios ocupados da Cisjordania e da Faixa de Gaza. A criacao do Estado de Israel nao e indissociavel do tempo em que vivemos e, principalmente, do momento historicos que levou a sua concretizacao. Falo, em particular, do nacionalismo na Europa nos finais do seculo XIX e inicios do seculo XX - da ideia de que cada povo teria direito a um territorio nacional. A experiencia demonstrou-nos que tal visao nao e benefica ao futuro dos homens. Por este motivo, hoje na Europa, embora com alguma dificuldade, tentamos procurar um caminho comunitario onde nos podemos encontrar para alem da nossa religiao, raca ou qualquer que seja a nossa identidade. A capacidade dos homens em encontrar solucoes para paradoxos complexos e ver os beneficios a longo prazo e precisamente o que nos distingue dos animais. Por isso, a insistencia de Israel em manter um estado nacional numa era em que caminhamos para a internacionalizacao dos povos parece um passo em sentido contrario em relacao a evolucao. Acima de tudo, e uma brutal violacao do que foi conquistado nos ultimos seculos pelo movimento em defesa da dignidade humana.

    Sao estas, de um modo geral, as duas perspectivas sobre o conflito. Confesso que, eu proprio, estou um pouco dividido entre elas e nao espero encontrar uma solucao que torne o assunto preto e branco. Mas talvez descubra uma terceira via. Como que um oasis no meio do deserto.

    Dia 17 - O monstro


    Apos varias semanas de viagem pelo Medio Oriente, subita e inesperadamente, deparamos-nos perante o monstro.

    Aconteceu em Betania, o local apontado como o lugar do baptismo de Jesus Cristo, nas margens do rio Jordao, um dos pontos mais baixos da terra. Estava quente e humido e sentiamos-nos como que atonados num caldeirao de agua a ferver, temperado com tomilho e alecrim. Integraram-nos num grupo de visita (na bilheteira disseram-nos que nao podiamos visitar sozinhos, de modo que o jipe e o guia estavam ja incluidos no preco do bilhete), com quem encetamos amena cavaqueira sobre experiencias passadas e conselhos futuros. Era, em suma, uma pueril manha de verao, tao leviana que quase nos distraimos do motivo que nos levou ate ali. Na verdade, nenhum de nos pareceu particularmente inspirado com o lugar do baptismo de Jesus. Entre a cova com um nico de agua amarelada e o mosaico que ilustra a visita de Joao Paulo II ao local (num carrinho de golfe, o Rei Abdullah a conduzir com o Papa curvado ao lado e uma distante Rania no banco de tras), sera porventura a reaccao natural.

    Seguiamos entao o nosso guia por caminhos de macadame sem mais proposito do que manter-nos a par da conversa. Depois de visitar uma igreja ortodoxa, que devera ter sido uma das estruturas mais recentes que visitamos nesta viagem, o guia apontou para umas escadas e disse: 'That way to Jordan River.' Mas nao nos avisou que, para la do arco de canaviais, o monstro nos esperava.

    O monstro tem a cara de dezenas de adolescentes e o som do recreio de uma escola. O monstro tem a cor azul e branca e o cheiro da terra. O monstro estava sentado a beira rio, a escassos metros de nos - uma distancia tao pequena que poderia ser atravessada em poucas bracadas. O monstro estava rodeado por homens vestidos de verde, empunhando metralhadoras e observando todos os nossos passos. O monstro quer comunicar connosco e, sem proferir palavra, acena-nos do outro lado do rio. A minha namorada decide responder-lhe e acena-lhe tambem. 'Don't wave at them! Don't wave at israelitas,' ordena o guia. Olhamos para tras e descobrimos finalmente que o monstro esta deste lado do rio tambem. O monstro nao e Israel, nem os Arabes. O monstro e o odio entre dois vizinhos.

    Passamos o resto do dia a dirigir esta imagem nas margens do Mar Morto.

    sábado, março 13, 2010

    Dia 16 - Na estrada para Amman


    Os dias em que atravessamos fronteiras sao invariavelmente os mais arduos. Este, embora nao tao cansativo como aquele dia em que cruzamos a fronteira entre o Libano e a Siria, nao fugiu a regra.

    Partimos de Damasco de manha cedo num taxi com destino a estacao de autocarros. Pelo caminho, encetamos conversa sobre politica com o taxista, por sinal um muculmano casado com uma crista. Diz-nos que na Siria apenas os Israelitas nao sao bem vindos (uma ideia, alias, ecoada por todos os locais pelos quais passamos ate agora). Talvez mais curioso foi partilhar connosco que nao existe nenhuma diferenca entre Bush e Obama. Perguntei-lhe se nao tinha ficado impressionado pelo discurso de Obama no Cairo. 'Nao. Ele continua a defender os interesses das mesmas pessoas.'

    Entretanto, entramos numa especie de via rapida e, em pleno movimento, comecamos a receber propostas de taxistas para nos levar para Amma ou Beirute. O primeiro quer demasiado dinheiro, o segundo aceita levar-nos ate Amman, com paragem no Teatro Romano de Bosra, por uma quantia razoavel. Aceitamos. Fazemos a transicao de veiculos ali mesmo na estrada. Uma hora mais tarde, estamos a porta do teatro. Pela primeira vez, desde do inicio da nossa viagem, somos recebidos por um bafo estival. Porem, o Teatro de Bosra vale cada gota de suor que escorremos. Acima de tudo, a dimensao e o extraordinario estado de conservacao do local deixam-nos esmagados.

    Uma hora depois, seguimos viagem. Entre o meu limitado arabe e o ingles inexistente do condutor descubrimos que e palestiniano e que nasceu num campo de refugiados em Beirute, perto do aeroporto. Pelo ar com que me conta isto, temo que seja Sabra ou Shatilla (onde, em 1982, decorreram terriveis massacres que forcaram a intervencao de forcas internacionais) e termino a conversa.

    A fronteira propriamente dita foi um episodio longo e intediante. Aqui, tal como na anterior fronteira, existem na realidade duas barreiras: uma para sair da Siria (em que tambem se paga) e uma para entrar na Jordania. Nesta ultima, o grau de controlo e bastante mais elevado, consistindo de numa revisao completa dos veiculos (durante a qual, um militar desce a um buraco na estrada para verificar a parte de baixo), das malas (as nossas, talvez por sorte, nao foram abertas) e dos passageiros (controlo demorado dos passaportes).

    Finalmente, entramos na Jordania. A primeira impressao e de enorme contraste com a Siria: temperatura mais alta, paisagem mais arida e amarela e menos imagens do chefe de Estado. Ajuda tambem que o Rei Abdullah II tenha um ar bem mais simpatico do que infezado Presidente da Siria, Bashir Al-Assad.

    quinta-feira, março 11, 2010

    Dia 15 - Os primeiros sinais de cansaco


    Ao decimo-quinto dia, precisamente o meio termo da viagem, comecamos a acusar o desgaste. Ha umas noites atras dei o meu grito de Ipiranga quando, segundo me contou a minha namorada, acordei a protestar com os muezzins (os chamamentos para as rezas). Dizia eu: 'Eu nao acredito! Eu nao acredito! Quero dormir e estes gajos querem rezar! Tu acreditas-te nisto?' 

    A verdade e que os Arabes (perdoem-me a generalizacao, mas depois de conhecer o Egipto, o Iemen, o Libano, a Siria e a Jordania penso que ja tenho direito a algumas) sao perfeitamente indiferentes a poluicao sonora. Aqui, tudo parece funcionar segundo uma ingovernavel hierarquia do som: no transito como na musica, no mercado como na mesquita, o escalao de importancia parece aumentar com o grau do som.  Ha uns dias atras, a minha namorada ficou bastante impressionada quando, num restaurante em Aleppo, os clientes e os musicas permaneceram impavidos com o chiar de um microfone que necessitava de calibracao. Nao pareceu uma anormalidade. Tivemos uma situacao semelhante na ultima noite em Damasco, quando fomos jantar a um restaurante situado no patio de uma antiga casa Otomana. Estava uma noite quente de primavera, pelo que podiamos apreciar as estrelas apenas levantando a cabeca das iguarias sobre a mesa.  Enfim, um ambiente ideal para um jantar a dois. Porem, sendo esse tal restaurante popular entre os damascenos, celebravam-se tambem varios aniversarios. Talvez, por esse motivo, e como nota de cortesia, o manager convidou um cantor e um pianista de orgao para entreter os clientes. Foi a desgraca de nos e do nosso jantar. O homem e o acompanhante musical formavam um dueto insurdecedor de sons agudos e metalicos, proximos do heavy metal, que nos impediu de qualquer conversa ao longo do jantar. Este sim, um retumbante fiasco!

    De igual modo, na Mesquita Omaida e no Palacio de Azem (governador Otomano da provincia da Siria), principais atraccoes da cidade de Damasco, sentimos-nos defraudados pela quantidade e, acima de tudo, sonoridade, dos nossos companheiros visitantes. E, no minimo, estranho que obrigem as ocidentais (mesmo que usando camisola e lenco na cabeca. Ah, e ja agora, obrigam os turistas a pagar para entrar num local sagrado) a trajar longas vestes, quando no interior nos deparamos com criancas a atravessar o patio em histeria, algumas descalcas, e uma delas ate mesmo, de patins em linha. No harem do Palacio de Azem, um espaco supostamente de tranquilidade, projectado com o fim de proteger a vida familiar do Pasha, tornou-se num campo de batalha, onde criancas e adultos se acotovelam de sala em sala, sem nada ler, nem nada ver, com uma voracidade glutona. Infelizmente, dou por mim a observar os poucos ocidentais que se encontram por perto como seres civilizados numa selva anarquica. Preferia nao pensar assim. Deve ser do cansaco.

    Dia 14 - Dedicacao


    Damasco. Agora compreendo.

    Percorro as tuas ruas em comocao; descubro; identifico as fontes que brotaram civilazao. Provo-te, beliscas-me - esta tudo aqui, diante dos meus aqui. Como pudera eu saber, sem nunca ter estado em Damasco?

    Damasco. Conhecer-te e penetrar o coracao da humanidade. E uma voluptuosa expedicao ate a cratera de um vulcao activo. Entusiasmo-me ao constatar que ainda estao vivas as fontes, as que brotaram sangue e alma aos homens da Terra.

    Damasco. Tua dimensao e vertical, atravessa as pedras da historia. Substrato sobre substrato. Apenas tu poderias conceber uma mesquita*, onde outrora fora uma basilica de Sao Joao Baptista, onde antes fora templo romano ao Deus Jupiter, e onde ainda primeiro fora um templo pagao dos Arameus. Como partida ou eterna recordacao da efemeridade humana, deixaste-se vestigios de cada uma destas transicoes. Mas que delicia!

    Damasco. Mais nao conseguiria escrever sem ferir a tua dignidade. Resta-me apenas o contento de um dia, tao cedo, ter-te conhecido e percebido mais qualquer coisa sobre a vida. Obrigado.


    * Mesquita Omaida (construida pelos Omaidas, os primeiros califas depois de Maome e os conquistadores da Peninsula Iberica em 711).

    terça-feira, março 09, 2010

    Dia 13 - Palmyra, a gloriosa


    Palmyra, a que nao merece ser enfiada num saco ao desbarato, funciona da seguinte maneira: os turistas levantam-se por volta das sete da manha (mais cedo, se pretenderem ver o nascer do sol nas ruinas) para tomar banho e pequeno-almoco. La para as oito, comecam a reunir-se a porta do Museu Nacional de Palmyra, uns dentro dos auto-pullman, outros na rua a negociar precos com os taxistas. Convergem aqui para comprar o bilhete que da acesso ao vale dos tumulos (nome que, imagino, sera inspirado no primo egipcio). Depois disto, um guarda sai do museu com um imenso molhe de chaves e entra dentro de um dos auto-pullman. Ele e a figura central neste cortejo, uma vez que lhe cabe a funcao de abrir dois tumulos entre as 8:30 e as 9:30 da manha. Finalmente, partimos em direccao ao deserto.

    A primeira paragem e precisamente no dito vale dos tumulos. Apesar de despojados do recheio, os tumulos continuam a estimular o Indiana Jones dentro de quem os visita, principalmente devido a mestria da construcao. Existem dois tipos de tumulos: os primeiros constituem torres de pedra com ou tres andares e ate pequenas varandas; os segundos sao escavados no deserto ao estilo dos tumulos egipcios.

    Visto isto, seguimos para um castelo mouro do sec. XVII, encrustado no cume de um monte que domina toda a planicie do deserto desde a cidade ate as palmeiras do oasis. Aqui, pretendemos nao visitar o castelo (alias, estava fechado), mas sim apreciar a extensao das ruinas. Vale a pena o desvio: vista daqui, Palmyra, a resgatada, torna-se numa perfeita maqueta de uma prospera cidade romana.

    Por fim, descemos em direccao as ruinas e vamos directos ao Templo de Bel. Damos uma voltinha por ali sem grande emocao pois constituem uma palida comparacao com os templos de Balbeek no Libano. Comecamos a pensar que ja vimos demasiadas ruinas romanas numa so viagem. Porem, logo em seguida, somos obrigados a reconsiderar o pensamento – saindo do templo, deparamos-nos com as ruinas de Palmyra, a cidade romana. A nossa frente, temos um enorme arco que inicia uma via delimitada por enormes colunas. Cada uma destas colunas, tem um pequeno pedestal onde, em tempos, estiveram as estatuas dos notaveis da cidade (curiosamente, uma das colunas ainda tem a estatua). O caminho entre as colunas esta em terra tal como o original (os romanos optaram por deixa-lo em terra para que os camelos o podessem atrevessar), mas nos lados exteriores das colunas existem ainda as lajes que formavam as vias pietonais. Enfim, Palmyra, a gloriosa, esta repleta de pequenos pormenores com este. Passamos la o resto da manha, mas podiamos ter la estado dois dias.

    A tarde, partimos em direccao a Damasco.

    segunda-feira, março 08, 2010

    Dia 12 - Jantar a luz de Palmyra


    Antes de aqui estar, a associacao mais proxima ao nome Palmyra (exceptuando, claro, a derivacao portuguesa Palmira) era de um bar de dancas no ventre no Cairo que acabou por se demonstrar um tenebroso bar de alterne. Nao era, pois, uma ideia positiva.

    Palmyra, a cidade, esteve prestes a ser enfiada no mesmo saco. Ao contrario de muitos outros locais na Siria, Palmyra, a cidade, vive da memoria de tempos passados – dos dias em que era um mitico oasis do deserto, um estrategico intreposto da rota das sedas e da sua proeminencia na arquitectura admnistrativa do Imperio Romano. Hoje, porem, Palmyra, a moderna, e uma teia de aranhas no meio do nada a espera de devorar os touristas que pousam nela. Um desses locais onde todos os estranhos estao destinados a ser maltratados.

    Para nos, a coisa foi pior porque nao haviam taxis 'oficiais' na paragem do autocarro, pelo que tivemos de atravessar de uma ponta a outra da cidade com as mochilas as costas (pelo menos, era o final da tarde e sol do deserto foi manso connosco). Finalmente, depois de chegados ao hotel, sentamos-nos a descansar as pernas na esplanada do hotel a beber o 'welcome tea'. Foi quando reparamos nos grupos de pessoas que seguiam para as ruinas com sacos de plastico. Fazia noite. Lembramos-nos entao que as ruinas estao abertas 24 horas (a excepcao de dois templos, a entrada e livre) e que talvez estas pessoas fossem fazer picnics.

    Sem demoras, compramos dois falefs e partimos em direccao ao clarao no meio do deserto. A medida que nos aproximavamos os cortornos das colunas, dos capiteis e das paredes dos templos tornavam-se cada vez mais perceptivos, como se nos encaminhassemos para uma miragem no deserto. Apenas esta nao era uma miragem. Era uma gigantesca cidade romana, resgatada das areias que, precisamente, tinham permitido a sua conservacao ao longo de quase dois milenios. Dos outros grupos, mais nao vimos. Estavamos em extase como na presenca de algo divino, caminhando aos zig-zags para evitar embater em qualquer pedaco da historia, guiados pelas luzes dos holofotes, mais tambem, pelo luar do deserto. Enfim, encontramos o local certo para o nosso jantar: sentados junto ao teatro, com as gigantes colunas da rua principal de Palmyra a nossa esquerda e o Templo de Bel defronte de nos. Sozinhos, a imaginar como seria a cidade. Ainda bem que tirei Palmyra do saco dos fiascos!

    Dia 11 - Beleza Siria


    Era precisamente a hora do lusco-fusco quando aterramos nos bancos de tras de uma carrinha Toyata com destino a Aleppo. Estavamos 60km a sul de casa e, no entanto, tendo em vista a jornada aventurada que agora terminava, sentia-me practicamente em casa. Aconcheguei a mochila entre as pernas, encostei-me para tras e fiquei a espera que a auto-estrada me desse o biberon que necessitava.

    Confesso portanto que vi a minha vida andar para tras quando o conductor gira subitamente a esquerda para uma estrada de cascalho que nao dirigia a tal auto-estrada. Um homem aparece do nada, troca meia duzia de palavras com o conductor e parte em corrida para um emaranhado habitacional, a camioneta e nos no seu encalco. O homem entra dentro de predio de betao armado, deixa a porta escancarada, e ali ficamos nos no escuro a espera que algo aconteca. Minutos passam ate que uma familia inteira – um menino, uma menina, uma mulher com um bebe ao colo e o tal homem – saltem para fora do predio, para dentro da camioneta e para a ultima fila de bancos. Vinham afundados em roupas, com ar de quem ia para a cidade e traziam uma merenda para o caminho. Quando se aproximaram do autocarro, os outros passageiros levantaram-se para os ajudar a entrar, pegando nas criancas e arrumando os sacos. Pouco depois, rolavamos finalmente na auto-estrada, porem o meu sono tardava em chegar.

    Na minha cabeca, os passos do dia desenrolavam-se em flashback: o homem que nos arranjou uma boleia ate a paragem dos autocarros; as criancas que pararam de jogar futebol para nos mostrar onde ficavam as piramides bizantinas; os dois homens que nos resgataram de uma longa caminhada pelo campo, e nao descansaram ate descobrirem o local que pretendiamos ir; os pastores que desviaram as ovelhas para nos deixar passar; a boleia numa camioneta verde sempre em festa; o condutor do autocarro de Aleppo para Marat An-Nouman, que veio a mostrar as fotografias da filha o caminho inteiro; o universitario que nos levou a estacao certa de autocarros em Aleppo; o motorista que me chamou para devolver o dinheiro dos bilhetes quando lhe expliquei que, por erro meu, tinhamos entrado no autocarro errado; e o merceeiro que nos ofereceu as bolachas que nao quissemos comprar por considera-las demasiado caras. Enquanto parte do chamado mundo livre, a generosidade dos sirios teve um efeito demolidor sobre mim. Afinal, quem sao os humanistas?

    A noite, estirado em frente de uma cerveja no Hotel Baron, casa de TE Lawrence nos seus tempos em Aleppo, chega-me a ideia de que esse humanismo nao e apanagio dos arabes. Simplesmente, o humanismo europeu sofre de uma lenta estrangulacao pelas rudes maos do desejo material. E ha cada vez menos, capazes de reconhecer que, talvez ai tambem, resida a origem da nossa vulnerabilidade.

    domingo, março 07, 2010

    Dia 10 - Imperio dos Sentidos


    Muito antes de uma ideia chamada globalizacao ter atravessado a mente dos homens, existia uma cidade onde comerciantes de todo o mundo, do Mediterraneo a Asia, da Russia a Africa, vinham fazer negocio. Essa cidade era Aleppo.

    Talvez por esse motivo, aquilo que hoje se chama 'cidade velha' se confunda com o souk, ou o mercado, de Aleppo. Entrando pela imponente Porta de Antakya, uma estrutura fortificada tipicamente mourisca, tem-se a sensacao de tropecar e cair no mundo das maravilhas. Tanto mais para nos que logo a entrada bebemos um café apimentado, cujo travo perdurou nas papilas durante o resto do dia.

    Como que interminaveis tuneis cavados na rocha, as ruas do souk sao inteiramente revestidas de pedra, desde a calcada aos tectos. Esta disposicao contribui para a atmosfera, simultaneamente, asfixiante e emocionante do espaco. Na rua principal, o cheiro a café mistura-se com os aromas das lojas de especiarias, os paus de canela, as flores de hibiscus, o assafrao e o tomilho. Em algumas lojas, os vendedores erigiram orgulhosas piramides de pos aromaticos que exibem sobre a rua como obras de arte. Numa ruela lateral, alfaiates deferem golpes em finos tecidos com longas tesouras apoiadas em reguas de madeia. Mais a frente, adivinham-se vendedores de tapetes dentro de nuvens de fumo de tabaco e nargileh (cachimbos de agua). Na zona dos ourives, tudo o que brilha e dourado, embora nao necessariamente de ouro. Vendem-se tambem esfregoes para a casa, esfregoes para o corpo, baldes de plastico, tachos, panelas, detergentes para a louca, detergentes para os videos, detergentes para o chao e outras utilidades modernas. Carrinhas apitam pela multidao adentro, comerciantes convidam os turistas a visitar as suas lojas, muezzin (os minarets das mesquitam) marcam a hora da oracao, radios tocam musica e criancas brincam. Em zonas mais recatadas do souk, abrem-se portas para desvendar verdadeiras arcas do tesouro, antiguidades e irrepreensiveis imitacoes que preferimos nao ver. A ignorancia e a melhor amiga da carteira.

    Ja no que toca a gastronomia local, o mesmo nao se aplica. Fruto da profusao do comercio local, Aleppo tornou-se num ponto de convergencia para diversos generous de culinaria. Por esse motiva, a cidade comeca a afirmar-se com um dos principais destinos de comercio gastronomica do mundo. Para vos abrir o apetite, deixo-vos entao uma seleccao do melhor que aqui comemos: creme de lentilhas com limao, beringelas grelhadas em salsa de tomate, carne kebab com molho de cerejas e toska, uma especialidade Armenia, que consiste numa sandwiche de carne com queijo e pimento vermelho. Simplesmente delicioso!

    sexta-feira, março 05, 2010

    Dia 9 - Hama

    Ha cidades estranhas e ha cidades prazenteiras. Hama pretence a esta ultima categoria.

    A caracteristica definidora da cidade e a sua situacao num gancho do rio Orontes. Na margem sul do rio, reside a parte moderna da cidade. A luz do dia, comprova-se que esta area, em contraste com a vasta maioria das cidades no mundo arabe, e airosa e pacata. Continuando a caminhar ao longo do rio, deparamos-nos pela primeira vez com as famossissimas norias de Hama - gigantes moinhos de madeira que datam do seculo XIII. Demoramos-nos estupefactos com a dimensao das estruturas, enquanto os locais se demoram curiosos connosco. Esta sol e a temperatura amena convida a passeios no simpatico parque que delimita a marge norte do rio.

    Continuamos na margem sul, no caminho que acompanha a curva do rio ate ao casco antigo da cidade. Num cafe com vista sobre o rio, jovens em idade escolar jogam cartas e bebem cha. Descobrimos mais tarde no guia que esta parte da cidade foi destruida em 1982, quando o governo esmagou uma revolta liderada pela Muslim Brotherhood (mais conhecida por atentados terroristas contras turistas ocidentais no Egipto). Todavia, a cidade reteve o suficiente para se apresentar hoje como um dos mais piturescos enclaves do vale do Orontes. Foi uma manha bem passada.

    Por volta da hora do almoco, partimos em direccao a Aleppo, a segunda cidade da Siria e o nosso objectivo principal nesta digressao a norte. A excepcao de algumas mulheres, a camioneta vai repleta de homens demasiado pobres para constituirem uma classe media no sentido europeu da palavra; e demasiado ricos para se confudirem com as duas mulheres e as seis criancas descalcas que varrem o autocarro antes dos passageiros entrarem. Coagito que esta massa que ocupa os bancos forma o middle Middle East - os tais hearts and minds que tantos lideres iluminados do mundo global querem conquistar.

    A experiencia de andar de camioneta na Siria tem o seu que de comico: trata-se pois de um autocarro que funciona como um aviao. Ou seja, temos um hospedeiro de bordo que verifica se estamos sentados nos locais certos, que distribui copinhos de plastico, rebucados e agua e que, finalmente, liga o filme na televisao (sim, as cadeiras rotas podem nao denunciar, mas este autocarro e de luxo). Tanto quanto consegui perceber (e nao foi muito), a historia centra-se num professor/director de uma escola para rapazes, cuja filha e uma estrela pop muito estimada pelos alunos. Num instante, entre os gritinhos do professor e as actuacoes da artista em vestimentas reduzidas (quando pergunto ao hospedeiro de que se trata o filme, responde-me somente que a actriz e libanesa), os hearts and minds sao arrebatados pelos ecras. Se ao menos esses senhores da politica mundial andassem mais de autocarro...

    quinta-feira, março 04, 2010

    Dia 8 - Jornada Tranfronteirica


    Antes de mais, devo-vos uma explicacao pelo atraso na publicacao deste relato, assim como do ultimo (do qual, apenas aparecia no blog o titulo ‘Dia 7 – Beirute, Cidade Dividida’). A verdade e que nao vos escrevo de um pais livre. Ambos estes textos foram apagados no momento da publicacao – nao devido ao seu conteudo, mas simplesmente pela dificuldade lacunas do sistema de censura deste pais para que consiga publicar estes dois textos agora: e que, em alguns internet cafes, embora nao consiga aceder ao meu blog, consigo publicar. Ou seja, e permitido escrever, mas nao ler. Sao os caminhos turtuosos da liberdade de expressao na era da informacao.

    Mas vamos ao que interessa: a viagem de Beirute ate Hama. E que viagem! De autocarro ate Tripoli (norte do Libano), de taxi atraves da fronteira ate a uma saida da auto-estrada, da taxi montanha acima ate ao magnifico Krak des Chevaliers (um castelo contruido no sec. XII pelos Templarios, que um dia TE Lawrence chamou ‘o mais perfeito castelo do mundo’ e que tem a poetica particularidade de nunca ter sido conquistado), almoco e visita rapida ao castelo, de novo montanha abaixo ate a estrada, de boleia (paga) ate Homs, de minibus ate Hama e, finalmente, de taxi ate ao hotel. Para mais tarde contar, ficam muitas peripecias e sobressaltos (Onde esta a minha mochila? O que queres da minha ‘mulher’? Onde estao os nossos passaportes?), muita discussao em arabe, ingles e frances a mistura e alguma vigarice (a comecar pelo oficial de fronteira que nos levou 10 dolares a mais pelos vistos). Enfim, exaustos mas bem chegados.

    Todavia, apesar destes precalcos e da austeridade espelhada na cara do lider (replicada por todo o lado), descobrimos um pais mais tranquilo, hospitaleiro e homogeneo do que no Libano. A marca mais evidente da distincao esta na paisagem. Depois de atravessarmos a cordilheira do Monte Libano, mergulhamos numa verde planicie de vegetacao rasteira. As colinas suaves, as oliveiras e, sobretudo, o espaco, suscitam-nos a ambos a recordacao do portugues Alentejo – com a diferenca deste vale do rio Orontes ser mais densamente populado. Em Hama, o constraste torna-se indubitavel. Os edificios escangalhados, os posters dos militantes e os jipes de vidros fumados deram aqui lugar a ruas de comercio honesto, onde homens e mulheres, velhos e novos, se cruzem com familiariedade. Apetece conhecer esta Siria.

    terça-feira, março 02, 2010

    Dia 7 - Beirute, Cidade Dividida

    O Museu Nacional de Beirute e como um paciente em estado de convalescenca depois de passar as portas da morte. A doenca do Museu Nacional foi a guerra civil libanesa que durou de 1975 a 1991. Um video no interior mostra a precaria condicao do museu quando as AK-47 ‘finalmente’ se silenciaram: as colunas exteriores carcomidas por balas, as paredes (e os mosaicos que nelas estavam pendurados) esburacados por explosoes, o hall de entrada coberto de entulho e a coleccao, ou o que restava dela depois de saqueada e vandalizada, submersa em agua na cave. Felizmente, no inicio da guerra, os curadores do museu tiveram a previdencia de guardar os maiores artefactos (sarcofagos egipcios, tumulos bizantinos, estatuas romanas, entre outros) dentro de caixotes de cimento armado. Gracas a este esforco, assim como um meritorio trabalho de restautracao, o Museu Nacional de Beirute apresenta-se hohje de novo como o louvavel depositorio da historia deste territorio. Nao deixa, porem, de ser um espectaculo bizarro admirar tao valiosas antiguidades num edificio, ele proprio, marcado pelas vissicitudes da historia.

    Partimos em direccao ao centro atraves da via que um dia albergou a Green Line – principal frente de batalha durante a guerra civil, que separava Beirute Ocidental (muculmana) de Beirute Oriental (crista). Curiosamente, porque iamos esfomeados, penetramos pelas arterias de Beirute Oriental no encalce de algum local que oferecesse comestiveis. Porem, sendo um domingo, encontramos tudo encerrado. Tentamos entao Beirute Ocidental, onde nos deparamos com uma cidade eferverscente (o fim-de-semana arabe e de sexta a sabado). Em muitos outros sentidos, tal como neste exemplo, Beirute continua a ser uma cidade profundamente dividida.

    Essa sera, pelo menos, uma das percepcoes mais fortes que levamos desta fantastica cidade. A outra impressao incontornavel e do constante rebulico, da agitacao e da instabilidade. Jantamos em casa com amigos e assim nos despedimos de Beirute. Decidimos pois, fazer a primeira alteracao no nosso percurso e partir mais cedo do Libano em direccao a Aleppo (norte da Siria). Amanha, comeca a verdadeira aventura levantina.

    segunda-feira, março 01, 2010

    Dia 6 - Ruinas romanas em Balbeek


    Balbeek, na extremidade norte do vale de Bekaa (Libano), a meio caminho entre os rios Litani e Al-Aasi, sera talvez um dos locais sagradas mais antigos do mundo. Fundada pelos fenicios no terceiro milenio antes de Cristo, foi depois conquistada por Alexadre que lhe atribuiu o nome de Heliopolis (cidade do sol). Mais tarde, Julio Cesar estabeleceu aqui uma colonia romana, a que deu o nome da filha - Julia. 

    Iniciou-se entao a construcao de um centro religioso dedicado a tres dos mais importantes Deuses romanos (Jupiter, Venus e Baco), e no qual se estima que mais de 100.000 escravos trabalharam. Finalmente, no seculo VI depois de Cristo, o Imperador Justiniano, no intuito de sobrepor o cristianismo ao paganismo, enviou os pilares mais altos do Templo de Jupiter para Constantinopola, onde serviram para a construcao da antiga igreja de Santa Sofia. Nos seculos seguintes, e apesar de inumeros saques, ataques e terramotos, o centro resistiu com arripiante dignidade ao desgaste do templo.

    Hoje, no inicio do segundo milenio depois de Cristo, as ruinas de Balbeek constituem indiscutivelmente um dos mais relevantes conjuntos arqueologicos do periodo romano. A primeira impressao e da incomensuravel dimensao do espaco. Desde a escadaria palaciana que da acesso ao templo ate as derradeiras colunas do Templo de Jupiter (infelizmente, nao tenho conseguido colocar fotografias no blog mas tenho a certeza que ficariam impressionados com as nossas fotografias junto dos pilares), percebe-se que Balbeek foi projectada a escala divina e nao humana. Mas, sobretudo, impressiona-nos o estado de conservacao destes tres templos romanos. Tendo ja visitado algumas ruinas da antiguidade classica, posso afirmar com conviccao que Balbeek pertence ao grupo restrito de locais arqueologicos onde realmente se pode imaginar a vida quotidiana do passado (porventura, apenas comparavel com o Coliseu de Roma e Pompeia). Destaca-se , em particular, o bem preservado Templo de Baco, onde permanecem as quatro paredes interiores, assim como os pilares exteriores e os detalhados tectos originais. Um monumento da humanidade que, por si so, justifica uma visita ao Libano.