A Gaivota Farragulha

    segunda-feira, abril 19, 2010

    É só um bocadinho



    (Pst, pst. Huffington Post)


    Enquanto não recupero os meus apontamentos para acabar o diário da viagem ao Médio Oriente, ficam aqui duas fotografias inevitavelmente cómicas. Aconteceu durante uma missa em Malta no fim-de-semana passado. Esta história da pedofilia na Igreja Católica deve andar a roubar o sono ao Papa...ou talvez o Papa estava apenas a cumprir parte da experiência católica - adormecer durante a missa.

    quarta-feira, abril 07, 2010

    Dia 26 - Este 'país' não é para velhos


    (Do outro lado. IndigoeoMar)

    As coordenadas eram simples: encontrar-nos-íamos a meio da manhã na Al-Manara Square no centro de Ramallah. Chegar lá, era connosco. Para mim, que passei os últimos anos a ler sobre guerrilhas nas ruas da cidade, procurar um contacto em Ramallah soava-me a aventura, pelo que disse logo que sim, que lá estaríamos. Assim foi.

    Para chegar a Ramallah é necessário ir até à Porta de Damasco em Jerusalém e apanhar o autocarro 18. Logo ali, numa rua fechada ao trânsito por detrás do mercado, sente-me o ambiente tenso de uma zona de guerra: mulheres de cabeça coberta percorrem a rua com sacos de plástico nas mãos sob o olhar de militares empunhando metralhadoras. Após um pequeno compasso de espera para completar os lugares do autocarro (ou não fosse este um veículo árabe), partimos em silêncio e de cortinas quase fechadas em direcção ao check-point de Qalandia. Pouco depois, e sem qualquer tipo de interregno, atravessamos a enorme barreira que divide os dois territórios. Entrávamos na Palestina.


    Os nossos contactos eram Rawda e Issa Khouriya, um casal católico palestiniano que se lançou recentemente no negócio do turismo para financiar a construção de uma moradia de quatro pisos. Receberam-nos com notória inquietação – estavam preocupados com a limitação do tempo. Olhamos para o relógio e pensamos que os nossos anfitriões deveriam estar loucos: ainda não eram 11 da manhã e todos os locais que pretendíamos visitar ficavam a escassos quilómetros uns dos outros. Mal imaginávamos nós que nem teríamos tempo de engolir uma sanduíche.

    As deslocações de automóvel na Palestina são infindáveis torturas que ziguezagueiam entre colinas e depressões, pincham de lomba em lomba e estagnam ocasionalmente em submissão aos jovens israelitas que patrulham a região. Nenhum dos que vi aparentava ser tão velho quanto eu. Para completar o quadro, o nosso condutor demonstrava uma cabal falta de aptidão para a tarefa que lhe competia; acima de tudo, uma enorme dificuldade em detectar passeios, lombas e tudo mais que não se apresentasse no raio de um metro a contar em linha recta a partir dos seus olhos. Portanto, parte da pressa era dificuldade em deslocar-se.

    A outra parte era medo do escuro. Este sábado, dia de oração, coincidia também com um dos primeiros fins-de-semana depois de novo cul-de-sac no processo de paz. A segunda intifada começou assim. Será que a terceira começaria hoje? ‘Se a terceira intifada começar, vamo-nos embora,’ disse-nos a Rawda. ‘Halas, vamos embora!’ Grupos de crianças e pré-adolescentes claramente em busca de perigo começaram a ocupar as ruas. Fazia-se tarde e o Issa queria voltar a casa antes de anoitecer. Porém, o lençol da noite alcançou-nos a meio do caminho.

    Não nos deixamos apoquentar. Em breve, estaríamos em casa a digirir as histórias e as imagens que vimos num só de dia. De repente, ouvimos um disparo na berma da estrada, vemos um jovem esconder-se para lá de um pneu a arder e o Issa põe o pé no acelerador. ‘What the hell was that!?!’, perguntamos estremonhados, ainda a recuperar do susto. ‘Rubber bullets, no problem. Now you’ve had your little adventure in Palestine.’ Felizmente, a noite acabaria rapidamente para nós, mas, pelo aspecto da coisa à entrada de Ramallah, as guerrilhas voltariam nessa noite.

    terça-feira, abril 06, 2010

    Dia 25 - Yad Vashem



    (Yad Vashem ou o Museu do Holocausto em Jerusalém. IndigoeoMar)


    A história deveria começar aqui.

    O nome veio de um versículo do Antigo Testamento: "E a eles darei a minha casa e dentro dos meus muros um memorial e um nome (Yad Vashem) que não será arrancado." (Isaías 56:5.)” O propósito veio da memória recente: Yad Vasem é o museu e memorial para “Recordação dos Mártires e Heróis do Holocausto.” O espírito preenche a lacuna entre o caos e a realidade: a perseguição do povo judeu.

    À entrada (gratuita, assim como o shuttle que nos leva através de um bosque desde da estrada principal até às portas do memorial), uma senhora pergunta-nos de onde somos. Surpresa! Somos do país de um grande homem, um homem que arriscou a vida para salvar milhares de judeus, um homem chamado Aristides de Sousa Mendes. Diz-nos para acorrermos ao memorial das crianças vítimas do Holocausto, e procurar no jardim dos ‘Justos entre as Nações’, do lado direito uma árvore com o seu nome – é a apropriada homenagem que o povo judeu lhe concede. Mais informação no site do memorial, aqui.
    É também, felizmente, a única referência ao nosso país no museu inteiro. Pois, o Yad Vashem não se confina às brutalidades cometidas pelos Nazis na primeira metade do século vinte; ao longo de onze primorosas salas, o Yad Vashem narra a história de segregação e violentação do povo do judeu e da qual quase ninguém, nem mesmo os EUA, sai incólume (no capítulo da Inquisição, fala-se da Espanha e não de Portugal). O museu dedica particular atenção aos antecedentes europeus do nazismo, nomeadamente o aumento do nacionalismo e episódios como o affair Dreyfus, e estabelece uma lógica e sensata ligação entre o geral e o particular – afinal, o Nazismo não foi uma excepção. Entre outras curiosidades do museu, existe um filme sobre profissões tipicamente desempenhadas por judeus antes do nazismo e a recriação da sala de estar de uma família judia abastada.

    Mais do que impressionar pelas atrocidades, as salas dedicadas aos Holocausto procuram abranger a variedade de experiências judias durante este período negra da história. Fala-se dos campos de extermínio e das câmaras de gás, mas também dos campos de trabalho, dos judeus que fugiram para outros países, dos que viveram ocultos sobre ocupação alemã, dos que foram forçados a longas caminhadas no final da guerra (marchas da morte), dos que se revoltaram, dos viveram nos guetos, dos idosos e dos doentes, dos que foram salvos por oficiais alemães, dos que morreram e sobreviveram, entre muitas outras realidades. No fundo, fica-se com a sensação de que o Holocausto não foi o episódio monolítico como é frequentemente retratado pela imprensa: o povo judeu estava sob ameaça iminente em todo e qualquer lugar.

    Perceber isto é perceber porque os judeus querem um Estado só para eles. É perceber também porque os Judeus atribuem um valor tão alto à segurança dos judeus, enquanto indivíduos e enquanto povo. É começar a perceber a história do conflito israelo-árabe. Ainda bem porque no dia seguinte partiríamos para a Palestina. Estávamos preparados.

    quinta-feira, abril 01, 2010

    Dia 24 - Valsa com Bashir



    (Soldados em Akko, no norte de Israel. IndigoeoMar) 


    ‘Which place did you like the most, so far?’ Noutra situação, a pergunta marcaria o inicio de um pacífico serão. Porém aqui, sentado da sala de estar de três militares israelitas que conhecemos dois dias antes através do site couchsurfing.com, a pergunta soa-me a convite para passear num campo de minas*. Optamos pela sinceridade: ‘Balbeek, in Lebanon.’ Pedem-nos para explicar. ‘Oh, it’s amazing! The size of the temples, the state of conservation and the atmosphere, it’s really special. It’s in a valley, surrounded by huge mountains and the peaks are still covered in snow. Shame we couldn’t stay for longer because it became dark and we had to leave.’

    ‘I was in Balbeek once,’ diz o Doron, o nosso contacto do couchsurfing. ‘It was dark too and there was a lot of fireworks. And I was shitting myself.’ Afinal, a conversa sempre era um campo de minas.

    A partir deste ponto, o nosso interlocutor transforma-se: desapareceu o jovem vibrante, criado num kibbutz no norte do país, voraz defensor dos ideais comunistas e surgiu um adulto ansioso, tremulo de mãos e de cara, e possuidor de olhar frio e lancinante. Diz-nos que o exército israelita decide, com base em exames físicos e psicologias, em que divisão cada jovem do sexo masculino cumpre os três anos do serviço militar obrigatório. No caso dele, coube-lhe uma divisão de elite. ‘I’m a good shooter. What can I do?’ Diz-nos também que tinha 18 anos e fez o que lhe pediram porque tinha medo – não pretende falar sobre o que fez (eu sei, eu perguntei). Diz-nos que duas vezes por ano é chamado para treinar no exército, para se manter em forma, e que, em caso de guerra, como em 2006 com o Líbano, deve apresentar-se ao serviço. Mais tarde, e já em forma de desabafo, diz-nos: ‘So much fighting for land! They want the land, they can take it!’ Pensei com os meus botões: passa-se qualquer coisa de errado.

    No dia seguinte, estávamos de novo reunidos na sala - eu, a minha namorada, o Leor e um amigo deste, o Aviv. Mal a minha namorada se retirou para o quarto, o Aviv disparou na minha direcção: ‘What do they say about Israel in Lebanon and Syria? What do they think about us?’ Era a pergunta que eu mais temia. Porém, tal como na noite anterior, quem começou a tremer foi o meu interlocutor. Da minha resposta pouco quis ouvir. Olhando com os olhos mais sérios com que jamais me olharam, e para os quais não encontro outra associação senão os da testemunha de acontecimentos tremendos, disse-me qe não estava a favor daquilo que os israelitas faziam com os povos árabes. Mas logo depois disse que considerava estranho que os palestinianos na Jordânia não gostassem de Israel (contei-lhe a conversa com um motorista), tendo em conta os acontecimentos de Setembro de 1970 – quando o Rei Hussein da Jordânia esmagou brutalmente a resistência palestiniana e obrigou-os a partir para o Líbano. Pediu-me, várias vezes, para o confirmar na Internet, até que lhe prometi que o veria amanhã (aqui está). A sua obstinação lembrou-me a indeferença dos loucos perante o que os outros pensam e dizem – ele projectava em mim próprio um julgamento moral sobre aquilo que ele e o país dele fazem (mesmo depois de lhe ter dito que tinha partido nesta viagem de mente aberta sobre o conflito e por isso tinha visitado estes países).

    Lembrou-me também o filme israelita ‘Valsa com Bashir’, nomeado para o Óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira no ano passado (se ainda não viram, recomendo). Curiosamente, quando estávamos no Líbano, o filme veio à baila. Os meus amigos que lá vivem disseram que não apreciaram o filme por o achar condescendente com os soldados israelitas. Discordei na altura, e depois destas duas últimas noites, discordo com ainda mais convicção. Os soldados israelitas podem ser a mão que segura a pistola mas não são o cérebro que decide disparar. É necessário e humano reconhecer que também para eles, tão novos e tão manobrados, a guerra é uma violência. Negá-lo é outra forma de extremismo.




    * Acresce a este aspecto, o facto de os Israelitas não poderem viajar para a Síria e para o Líbano, sendo por isso compreensível a sua curiosidade por estes países.