(Simplesmente, José Saramago. Miopia)
José Saramago, escritor maior da língua portuguesa, morreu sexta-feira passada aos 87 anos na sua casa em Lanzarote.
Curiosamente, não é a obra do homem que mais nos ocupa neste momento da sua morte. São os prémios que alcançou, as controvérsias que protagonizou, a longa e tumultuosa vida que levou e, agora até, as personalidades que ao seu funeral acudiram. Por minha parte, preferiria recordar Saramago sem Nobel nem polémicas - ambos apenas o vulgarizaram nas bocas do mundo – mas reconheço que não existe opção. Saramago será sempre os livros mas também o Nobel, o exílio de Portugal, o comunismo, o ateísmo, o anticlericalismo, o iberismo e outros ismos que foram afixando a cada palavra sua. Para os outros talvez possa ser apenas o escritor, mas não para nós, portugueses, falantes da língua que enalteceu com luzidias palavras - Saramago será sempre obra e vida.
Da excelência dos seus escritos, pouco resta dizer. Para mim, Saramago seria menos ‘operário da palavra’, como tanto gostava de se definir, do que trapezista da trama, cada livro seu tão surpreendente como intrincado na elaboração de universos equidistantes habitados por personagens aparentemente vulgares e certamente familiares ao leitor português. Quem acusava, e ainda acusa o escritor de ‘não gostar do seu país’, ignora com certeza o carinho com que apontava o carácter nacional: esta afectividade langorosa entre homens, mulheres e animais, esta honestidade singela, estes renitentes usos, costumes e tradições. Insistiam em situá-lo na escola sul-americana do realismo mágico, na tradição de Gabriel García Marquéz, Jorge Amado e Jorge Luis Borges; porém, Saramago distinguia-se. A miscigenação entre fantástico e terreno nos seus livros ia além do estritamente harmonioso e bolinava a rajadas bruscas entre o surrealismo ibérico e a lusitana propensão para o trágico. Sentia-se seguro, consciencioso, simples e escrevia por longas alíneas que espavoriam leitores, não sabendo que esta é voz de quem desafia a idade, uma espécie de chave mística para uma espécie de longevidade. Por transbordar sabedoria humana em avassaladoras composições, Saramago detinha singularidade no mundo da literatura mundial e merece a nossa adoração, com ou sem Nobel.
Sobre a sua vida enquanto homem público é-me mais difícil qualificar. Por dois motivos: primeiro, porque não vivi, nem sofro forte emoção, sobre o período mais conturbado da sua existência, ou seja, o período pós-revolucionário; segundo, porque nunca tive oportunidade de conhecer o homem em causa. Ainda este ano, por altura da homenagem a Agustina Bessa-Luís na Fundação Fernando Pessoa, pensei em ir a Lisboa para ouvir ao vivo o melhor escritor português contemporâneo falar sobre a melhor escritora portuguesa de sempre. Saramago estava já muito doente e não compareceu. Será sempre uma pena minha ter perdido todas as oportunidades de o ver e ouvir em pessoa. Mas segui com atenção as suas comunicações públicas na televisão, na imprensa e no seu blog, O Carderno de Saramago. Destas ficou a impressão de um homem marcado pelos revezes do início da sua vida, revoltado contra a homogeneidade do senso comum e de um guerreiro indefectível por uma moralidade pessoal que professava religiosamente. Aliás, só um homem profundamente convicto numa qualquer fé poderia ter dedicado tanto tempo e papel a rejeitar uma outra religião, neste caso a Igreja Católica. Nesta luta de titãs existia tanto ódio que só poderia haver uma sombra de amor olvidada no passado. Seja como for, impõe-se demandar se numa sociedade dita religiosamente livre, não haveria lugar no dealbar do século XXI para um crítico da Igreja? Não é essa tolerância que, afinal, nos distingue dos 'fundamentalistas árabes'?
Não posso oferecer a resposta, mas acho que Saramago gostava que pensassemos sobre estas questões. Pois, acima de tudo, Saramago gostava de provocar e, diz quem o conheceu, adorava discutir. Sempre que aparecia em público vinha armado de uma frase cirurgicamente manobrada para despoletar a indignação nacional. Infelizmente, Portugal não aprecia provocações. Obriga-o a pensar, a explicar aspectos da sua existência que considera melhor arrumados no fundo armário da memória nacional, por baixo de todos os grandes êxitos e delitos menores. E, em todas as grandes controversas que protagonizou, sejam elas sobre a religião, a sobrevivência do Estado ou a direcção política do país, Saramago foi retaliado com acusações e insultos mas apenas raramente com argumentos. Acredito que sofresse com esta nossa natureza, mas também que se divertisse. Fazia-o parte de nós. Uma parte hostil, distante, mas, ainda assim, um parceiro incontornável do debate português. Saramago era, afinal, um irmão difícil que, se não em vida, abraçaremos em morte. Até sempre.
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